[Nota: esta série de dois artigos são trechos extraídos no novo livro do Christopher West, “Word Made Flash: A Companion to the Sunday Readings” (Ave Maria Press). Disponível apenas em inglês, o livro ressalta o atual ciclo litúrgico (Ciclo C), que iniciou com o Advento em 2018, e os ciclos subsequentes serão lançados antes do Advento de 2019 e 2020. Inspirado pela visão bíblica, São João Paulo II desvelou para nós, suas 129 catequeses de quartas-feiras, de 1979 a 1984, chamadas de “Teologia do Corpo” (TdC). O propósito do livro é portanto apresentar a partir dessas Catequeses curtas e orantes reflexões das leituras dominicais e “abrir nossas mentes para compreender as Escrituras”, lendo-as à luz “da Palavra viva e encarnada”.
“O Cristianismo é a religião da ‘Palavra’ de Deus, ‘não duma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo’ (São Bernardo). Se as escrituras não devem ser letra morta, é preciso que Cristo, Palavra eterna do Deus vivo, pelo Espírito Santo, nos “abra a inteligência para entender as Escrituras” (Lc 24, 45) (Catecismo da Igreja Católica, 108).
As palavras Sagradas das Escrituras são, é claro, imensamente importantes para nossa fé. “Contudo, a fé cristã não é a da ‘religião do livro’”, como nos ensina o Catecismo (108). É a religião da Palavra Divina que “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). As Escrituras, de fato, serão letra morta, a menos que cada palavra sua seja lida em vista do Verbo encarnado.
O MAIS PROFUNDO SENTIDO FEZ-SE CARNE.
Você já parou para pensar o que a Bíblia realmente quer dizer quando se refere ao Filho Eterno de Deus enquanto Verbo? “Verbo” não consegue abranger toda a riqueza da palavra grega Logos. “Logos” se refere ao princípio racional que governa o universo – o sentido, a razão, a lógica e a beleza mais profunda por detrás de tudo. E o surpreendente pressuposto sobre o qual todo o cristianismo repousa é que o corpo humano é o veículo escolhido por Deus para comunicar sua Palavra, para comunicar o significado mais profundo, e para comunicar quem Ele é, quem somos nós, e o seu plano definitivo para o universo.
Assim como nos dias de Jesus, quando as pessoas ouvem quão importante é o corpo para a fé cristã, elas frequentemente dizem como os primeiros discípulos: “Essa fala é dura; quem poderá aceitá-la?” (Jo 6, 60). Essa resposta é compreensível. Como algo tão terreno como o corpo humano pode conter algo tão celestial quanto o Mistério de Deus? Porém, se acreditamos no significado do Natal, devemos acreditar nesse pressuposto. Para aqueles que têm olhos para ver, nossos corpos não são apenas biológicos; eles são teológicos – eles revelam a lógica de Deus; eles revelam o mais profundo significado que está por detrás de tudo.
É por isso que a Teologia do Corpo de São João Paulo II, apesar de ser tipicamente apresentada dessa forma, não é meramente um ensinamento papal sobre o amor conjugal e a sexualidade humana. Também é isso, com certeza, mas há muito mais. Como o próprio João Paulo II disse, o que aprendemos em sua Teologia do Corpo “refere-se a toda a Bíblia” (TdC 69, 8) e nos insere na “perspectiva de todo o Evangelho, de todo o ensinamento, e ainda mais, de toda a missão de Cristo” (TdC 49, 3). Através das lentes do amor esponsal, a Teologia do Corpo de João Paulo II leva a “redescoberta do significado de toda a existência… do significado da vida” (TdC 46, 6).
Como tenho falado desde 1990 em audiências católicas ao redor do mundo, está claro para mim que, muitas vezes, não temos consciência do que realmente está acontecendo na liturgia. Nós “olhamos, mas não vemos, e ouvimos, mas não compreendemos”, como Jesus disse em Mt 13, 13. Refletir sobre as leituras dominicais da Missa, com a ajuda da Teologia do Corpo de João Paulo II, é como colocar um par de óculos que coloca toda a história bíblica (e a própria liturgia) em foco. Parábolas e passagens familiares de repente “saltam aos olhos”, fazendo com que adentremos no mistério mais profundo e em seu significado como nunca antes. Passamos a compreender quer toda a vida cristã é um convite – como Jesus propôs em Mt 22, 1-14 e em Lc 14, 15-24 – para um banquete nupcial!
DEUS QUER SE CASAR CONOSCO.
As Escrituras se utilizam de muitas imagens para ajudar-nos a entender o amor de Deus por nós. Cada imagem têm o seu valor. Mas como partilhou João Paulo II, o dom do corpo de Cristo na Cruz dá “uma proeminência definitiva ao significado esponsal do amor de Deus” (Mulieres Dignitatem 26). De fato, do início ao fim, a Bíblia conta uma história nupcial ou conjugal. Começa em Gênesis, com o matrimônio entre o primeiro homem e a primeira mulher, e termina no Apocalipse, com o casamento entre Cristo e a Igreja. Bem no meio da Bíblia, encontramos o poema erótico do Cântico dos Cânticos. Essa centralidade fornece uma chave de leitura e de compreensão de toda a história bíblica. Na verdade, podemos resumir toda a Sagrada Escritura com cinco palavras simples, mas surpreendentes: Deus quer se casar conosco. Observe:
“Assim como um jovem desposa uma virgem,
Aquele que tiver te construído desposar-te-á;
E como a recém-casada faz a alegria de seu marido,
Tu farás a alegria de teu Deus (Is 62, 5).
Desposar-te-ei para sempre,
Desposar-te-ei conforme a justiça e o direito,
Com benevolência e ternura.
Desposar-te-ei com fidelidade” (Os 2, 19).
Deus está convidando a cada um de nós, de um modo único e irrepetível, a uma inimaginável intimidade com Ele, semelhante à união dos esposos em uma só carne. De fato, como observou o Papa Francisco, “a própria palavra [usada nas Escrituras para descrever a união conjugal]… ‘unir’… é usada para descrever nossa união com Deus: ‘”Minha alma está unida a vós, sustenta-me a vossa destra.” (Sl 62, 9). Dado o imenso êxtase da união com Deus, “um amor sem prazer ou paixão é insuficiente para simbolizar a união do coração humano com Deus: ‘Todos os místicos afirmaram que o amor sobrenatural, celestial, encontra os símbolos que procura no amor conjugal’” (Amoris Laetitia 13, 142).
Ainda que tenhamos pensar em meio a algum desconforto ou medo de ofender a sacralidade, a verdadeira santidade da imagem, a “escandalosa” verdade é que as Escrituras descrevem “a paixão de Deus pelo seu povo através de imagens audaciosamente eróticas”, como o Papa Bento XVI explicou na Deus Caritas Est (9). Em outro momento, ele declarou: “O Eros é parte do próprio Coração de Deus: o Todo-Poderoso aguarda o ‘sim’ de suas criaturas, como um jovem aguarda o ‘sim’ de sua noiva” (Mensagem da Quaresma de 2007).
Provavelmente, somos mais familiares (e mais confortáveis) ao descrever o amor de Deus como ágape – a palavra grega para o amor sacrificial, que se doa. Porém, o amor de Deus “pode certamente ser chamado de eros”, assevera Bento XVI. Em Cristo, o eros é “supremamente enobrecido… tão purificado até se tornar um com o ágape”. Assim, a Bíblia não tem escrúpulo ao empregar o poema erótico do Cântico dos Cânticos como uma descrição da “relação de Deus com o homem e do homem com Deus”. Desse modo, como concluiu o Papa Bento XVI, o Cântico dos Cânticos tornou-se não só uma expressão das intimidades próprias do amor conjugal, mas também “uma expressão da essência da fé bíblica: o homem pode, realmente, unir-se com Deus – sua aspiração primordial” (Deus Caritas Est 10).
Pergunta: O que aconteceria com uma paróquia se todos vivenciassem a Missa através das lentes da Teologia do Corpo?
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Autor: Christopher West
FONTE: Cor Project
Traduzido por Tiago Veronesi Giacone – Membro da Rede de Missão do Missão Campus Fidei, servindo nos Núcleos de Tradução, Formação e também atualmente participante do Grupo de Estudo YOUFAMILY em Brasília – DF.