Existe uma piada bem comum entre teólogos, principalmente no meio acadêmico, que soa quase que como um conselho. Costumam dizer: “quando tiver dúvidas de quem citou ou de onde veio o texto mencionado, diga que veio do Concílio de Trento, de Santo Agostinho ou de São Tomás de Aquino. Em 90% dos casos você acerta“. E realmente! A obras, os tratados, as definições sistemáticas destas três fontes correspondem a uma parte significante das referências católicas mais importantes.
Já tive a graça de participar de alguns encontros entre teólogos, o último deles, inclusive, foi em setembro de 2018 2017 no Rio de Janeiro e realmente observei que alguns mais cuidadosos dizem: ‘dizem por aí ser de Santo Agostinho…‘, outros, tomados por grande certeza, dizem ‘já dizia Santo Agostinho…‘ fazendo com que aquela frase se perpetue sem sua devida referência.
Alguns teólogos, inclusive, permitem que algumas frases ou citações perpetuem sem a devida referência.
Há algumas expressões, ditas por santos, que vão entrando em nosso dia a dia, de maneira repetitiva, e às vezes nem nos perguntamos de que livro veio aquela frase. Será realmente que aquele santo falou isso? Buscar as fontes é uma atitude crítica muito importante.
Imagino que a maioria de vocês já ouviram a frase: Quem canta, reza duas vezes, do latim ‘Qui bene cantar, bis orat’ que normalmente é atribuída a Santo Agostinho. Sempre me perguntei porque a natureza de cantar supera a da própria oração. Qual a explicação que Santo Agostinho dá a esta frase? Era algo que me inquietava e foi o que me fez ir atrás, procurar.
É engraçado que, enquanto buscamos algumas coisas na internet, encontramos muitas pessoas que fizeram a mesma pergunta. Há um artigo interessante, de um Reverendo presbiteriano chamado Kenneth Kovacs que é Ph.D em Teologia, com a tese Cantando o Louvor de Deus, baseado no Salmo 84. Logo no início do seu artigo ele coloca assim: “Que canta, reza duas vezes. Esta frase é comumente atribuída a Santo Agostinho que leva os créditos por ela. Mas não existe nenhum documento vindo do venerável doutor da Igreja que apareça esta expressão em Latim”
A referência mais confiável que temos desta frase está no Catecismo da Igreja Católica no n. 1156 e diz: ‘A Igreja continua e desenvolve esta tradição: “Recitai entre vós salmos, hinos e cânticos inspirados, cantai e louvai ao Senhor no vosso coração” (Ef 5,19). Quem canta, reza duas vezes (26)‘.
À primeira vista pode nos gerar um desconforto. Será que o Catecismo fez uma referência errada? A resposta é não! O Catecismo fez a referência corretamente, vejamos porque.
A primeira coisa que devemos observar é que não se trata de uma citação direta (colocada em aspas – tal qual foi tirada do texto original). A segunda coisa é que a própria nota de rodapé se utiliza do termo ‘confira’ (cf.) para fazer menção à referida fonte, ou seja, nos indica que houve uma paráfrase da parte do autor.
Veja como está na nota de rodapé:
Cf. Santo Agostinho, Enarratio in Psalmum, 72, 1: CCL 39, 986 (PL 36, 914).
O que um bom estudante deve fazer? Ir de fato conferir. E, realmente, Santo Agostinho nunca disse: ‘Quem canta, reza duas vezes’. Os comentários aos Salmos (Enarratio in Psalmum) estão publicados aqui no Brasil pela editora Paulus e foram dividos em três grandes obras na qual Santo Agostinho comenta todos os Salmos. Fomos atrás do Salmo 72 (disponível no volume 2), versículo 1 e encontramos o seguinte:
“Quem canta o louvor, não apenas canta, mas louva com alegria; quem canta o louvor, não somente canta, mas ainda ama aquele a quem canta. Constitui uma pregação o louvor de quem confessa, e o cântico de quem ama desperta a afeição”
É isto o que está escrito e nada além. O presbítero Kenneth Kovacs nos dá uma luz de uma possível aproximação da frase. Ele diz que, de maneira resumida, poderiamos dizer que: ‘Quem canta, reza; mas não somente reza, reza com alegria’. É esta a frase que mais se aproximaria da que costumamos ouvir. E o mais importante, nos ajuda a entender o porquê de parecer que rezamos duas vezes. A resposta é: Ao cantar, rezamos com alegria e é esta alegria que eleva mais firmemente nossa alma a Deus.
Ao cantar, rezamos com alegria e é esta alegria que eleva mais firmemente nossa alma a Deus
O objetivo deste texto era despertar em vocês uma atitude mais crítica quanto a origem de diversos textos que recebemos pela internet. Seja nas redes sociais, seja em panfletos de formações em nossas paróquias e comunidades. Eu, particularmente, já encontrei muitas ‘mensagens do Papa Francisco’ retiradas de livros do Augusto Cury e uma famosa carta com o tema ‘Santos de Calça Jeans’ atribuídas tanto a São João Paulo II quanto ao Papa Francisco. E definitivamente não foram eles que escreveram.
Duas atitudes nos ajudam bastante:
1) Ao receber um texto, faça uma pequena busca no google e observe se há uma fonte confiável antes de divulgar;
2) Sempre que ao ler uma obra, achar interessante divulgar, informe ao menos o nome do livro e do autor, pois isto gera confiança e permite com que outros possam ir atrás também.
Sejam sempre críticos, ainda mais quando se trata das coisas de Deus.
Por: Jeovah Fialho, prof de Teologia (FATEO e ISB), pós graduando em Antropologia e Logoterapia.