O primeiro livro que realmente me fez gostar da leitura não foi um grande clássico oriental ou um dos livros de Dostoiévski. Foi “A Guerra dos Tronos”, de George Martin. Talvez tivesse sido idealmente mais perfeito se eu lesse “O banquete” aos oito anos e logo me apaixonasse pela literatura e pela filosofia. Não foi assim. Ler no início era entediante e digno de procrastinações. Fui, então, para a literatura fantástica. Para alguns, é um tipo de subliteratura. Não posso dizer que concordo plenamente com essa assertiva, não obstante o fato de realmente ser um tipo de literatura um pouco mais “mastigável”. George Martin foi o autor que me fez saborear as palavras escritas e, apesar de esse tipo de satisfação não poder ser o único fim da leitura, representa um aspecto importante na vida dos neófitos literários. O problema é que nesse livro havia um monte de descrições sexuais e sensuais gratuitas que, à época, havia mexido com a cabeça imatura de um aluno do ensino médio com seus recém-completados quinze anos. A série nem existia ainda, para desespero dos fãs. Eu havia acabado de conhecer a Laíse, minha esposa. Começamos a namorar logo depois de eu finalizar “A guerra dos tronos”. Tinha continuação e eu queria desesperadamente ler “A Fúria dos Reis”. A Laíse, como uma boa cristã que tentava fazer o que é certo, mesmo sem compreender adequadamente os motivos pelos quais tentava seguir determinados axiomas religiosos, teve aquela conversa comigo sobre esperar pelo casamento, alguns meses depois de começarmos a namorar. “Que breguice!”, pensei. Engoli secamente, mas concordei veementemente com o que havia sido proposto, como se aquilo fosse o que eu mais desejava no íntimo do meu coração. “Esperar pelo casamento” soava muito medieval e eu estava na época das luzes. A verdade é que eu fiquei desapontadíssimo com a conversa, afinal eu era um jovem querendo dar alguns beijinhos e toques a mais na namorada.
Um dilema, então, surgiu: ler aquele tipo de livro implicava uma realidade paradoxal na minha vida, já que era extremamente positivo por me incentivar a gostar da leitura ao mesmo tempo em que era extremamente deletério por inibir que eu desenvolvesse a virtude da castidade. Eu lia aquelas cenas e logo minha imaginação tornava-se terreno fértil para todo tipo de safadeza e impureza. Não era necessário muito para que isso ocorresse, e aquilo definitivamente era muito. Naquele momento específico da minha vida, a leitura tornou-se algo que me fazia mais mal do que bem. Por conseguinte, eu precisava de uma experiência literária que fosse na contramão desse fato. Eu estava quase ficando doente e precisava de uma profilaxia poderosa.
A profilaxia veio com um livro improvável. Até hoje não me recordo como cheguei até ele, provavelmente foi em alguma das aulas de literatura, não sei, mas em algum momento tive contato com “O complexo de Portnoy”, de Philip Roth. O autor foi um ateu convicto que defendia que as práticas religiosas eram nonsense e que as instituições cristãs eram subjugadoras. Aquela velha e conhecida narrativa progressista. O livro em questão trata da história de Alexander Portnoy, um homem bem-sucedido, na casa dos seus 30 anos, que faz um monólogo sobre sua infância, passando pela adolescência e chegando à fase adulta. Lembro-me de ter lido o sumário e ter ficado extremamente curioso com o livro: “Bronha” era um dos capítulos. À época eu não sabia o significado dessa palavra, então tive de recorrer ao dicionário, como provavelmente alguns de vocês o farão. Iniciada a leitura, fica evidente que a história de Portnoy foi marcada por distúrbios sexuais os quais, em alguma medida, refletiam a relação conturbada que o personagem teve com sua mãe, descrita no livro como controladora. Num momento de tensão na narrativa, Portnoy compartilha como essa relação era estremecida: “Doutor, me diga, como é que pode uma mãe ameaçar com uma faca seu próprio filho? Estou com sete anos de idade, como é que posso saber que ela não seria capaz de usá-la?”. “Caraca, bicho” – eu pensava – “a mãe dele o ameaçou com uma faca de pão!”. A abordagem psicanalista implícita que havia na obra tentava explicar a relação entre pais e filhos – o pai dele era um bananão e o filho era quase indiferente a ele -, mas eu realmente só pensava no capítulo intitulado “Bronha” e em como Portnoy era um maluco viciado em masturbação.
O livro não é nenhum manual de como ser virtuoso. Não é nenhum exemplo de como ser casto. Pelo contrário, no livro há o relato mais preciso daquilo que assola a humanidade em relação à compreensão contemporânea sobre o que é o sexo e a sexualidade. Uma perversão, um alarido sexual. No entanto, conforme eu ia progredindo na leitura, conforme adentrava o enredo confuso e transgressor, ia passando por um processo de identificação, eu estava passando por uma catarse literária. O que não havia acontecido ao ler “As crônicas de gelo e fogo”, aconteceu ao ler “O complexo de Portnoy”: eu me percebi totalmente miserável e compreendi também o tanto que aquele personagem, que se parecia comigo, estava completamente destruído moralmente. Olhava para o meu interior e só conseguia pensar: “mas que merda!”. Esse pensamento fez morada na minha mente por um bom tempo. “Não sabeis que sois o Templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?”. Eu já havia escutado as palavras de Paulo várias vezes em alguns dos grupos jovens dos quais participei, mas não foi nenhuma pregação que me fez compreender isso na carne. Foi a literatura. E foi dolorosa essa percepção. Como diz o poeta, “entre a dor e o nada, o que você escolhe?”. Eu fiz minha escolha.
Abre parêntese: este texto não é nenhuma ode a Philip Roth, não é nenhum elogio à sua narrativa, não é nenhuma afirmação de que sua obra exala virtude e não é nenhuma tentativa de falar que uma narrativa qualquer pode substituir as Escrituras (no primeiro texto que escrevi sobre o assunto, tenho tentado mostrar que há uma relação de complementariedade entre literatura e religião, não de exclusão. Volte AQUI se você não o leu). Se fôssemos olhar objetivamente, a verdade seria o contrário. A despeito das problemáticas existentes, é mister constatar que a literatura também tem esse caráter intrinsicamente subjetivo: ela pode falar de diferentes modos a diferentes pessoas. Algumas literaturas são objetivamente boas e virtuosas, outras são objetivamente ruins e imorais. Contudo, o que o leitor faz com cada uma dessas experiências diz somente a ele. Alguém pode ler Kant e Agostinho e continuar sendo imoral, mesmo estudando sobre o Imperativo Categórico. O contrário também é verdade: naquele momento uma literatura problemática sob o ponto de vista da moralidade católica havia feito com que eu me percebesse moralmente doente. Isso pode acontecer com qualquer pessoa? Jamais. Depende de vários fatores psicossociais e culturais que não são facilmente controláveis. Eu não recomendaria a leitura do “Complexo de Portnoy” para minha filha, mesmo que ela tivesse 20 anos. Fecha parêntese.
Sob o ponto de vista religioso, a castidade é muito bem explicada pelo Catecismo da Igreja Católica: “A castidade significa a integração conseguida da sexualidade na pessoa, e daí a unidade interior do homem no seu ser corporal e espiritual (….). A virtude da castidade engloba, portanto, a integridade da pessoa e a integralidade da doação. (CIC, 2337) Teologicamente, portanto, a sexualidade tem a ver com a dimensão da pessoa humana e a sua relação com o outro, algo parecido com o que São João Paulo II vai desenvolver ao falar da norma personalista.
Tá, mas e sob o ponto de vista literário, o que uma narrativa pode nos dizer sobre a castidade e sobre a pessoa? As respostas aqui são muitas, acredito. A que serviu para mim vai ser a que defenderei: a literatura tem uma grande capacidade de nos convidar a entrar na narrativa, enxergarmos os personagens com as lentes das palavras e depois ela deve nos retirar violentamente para o mundo externo. Sucedida uma imersão suave, precisamos emergir apressadamente para as nossas vidas reais. Quem apenas imerge, torna-se um lunático. Quem apenas deseja emergir sem imergir, torna-se moralista. O que aconteceu comigo após ler “O complexo de Portnoy”? Eu havia entrado na narrativa, havia me identificado como um doente, mas ainda não havia tentativa sincera de mudança. Identificar o problema é, porém, uma etapa crucial na resolução de qualquer tipo de conflito. Foi preciso que eu descobrisse uma doença anterior à minha imoralidade sexual, a razão primeira das minhas outras doenças e, em certo sentido, a principal delas: a gula. A literatura também me ajudou com esse aspecto, mas isso virá em um outro texto. Por ora, é preciso avançar em águas mais mornas. Se a literatura pode dizer algo sobre sexualidade, ela pode dizer algo sobre a construção de virtudes.
É sabido desde pelo menos a Grécia Antiga que literatura é uma aliada poderosíssima na construção de virtudes. É totalmente sabido também que vivemos em um período de crise das virtudes e crise da literatura. Em casa, as crianças e os pais não têm temperança para lidar com as frustrações e impulsividades que aparecem na vida. Na escola, o conhecimento tornou-se apenas um meio para se atingir determinados objetivos. A filosofia perdeu o sentido de “amor à sabedoria”, hoje é apenas um instrumento de aprovação em provas de vestibular. A leitura de Machado de Assis, se for feita, não supõe uma análise da sociedade e das pessoas. O “Alienista” passou a ser alguém muito distante de nossa realidade… De certa forma, tudo isso influenciou na visão contemporânea acerca da sexualidade e acerca de outros assuntos importantes. Em algum momento do nosso trágico percurso educativo no Brasil e no mundo, a literatura perdeu sua grande força para mudar vidas e tocar os corações. Mas ela está lá. Há vários personagens que podem nos mostrar como sermos pessoas melhores: Ulisses, Ali Babá, Aslan, Bilbo Bolseiro, Policarpo Quaresma, Capitu… Existem incontáveis personagens virtuosos que podem ser “bússolas morais” para os cristãos, apesar de serem ficcionais. Esses personagens, movidos sobretudo pela Lei Natural, ajudam-nos a perscrutar o reto caminho. Em nosso próximo texto, conheceremos alguns exemplos desses homens e mulheres fictícios (e alguns animais e seres mágicos também) que podem nos ajudar na caminhada cristã, sobretudo no desenvolvimento de virtudes.
____________________________________________________________________________________________________
Texto escrito por Lucas Tomaz, missionário da Rede de Missão Campus Fidei.