Sobre o Verbo, Deus, deuses e afins

Dias atrás estava lendo alguns livros infantis, pensando em lê-los daqui alguns anos para meus filhos. “Alice no País das Maravilhas” era o clássico da vez. Uma criança de cabelos dourados vendo um coelho apressado que segurava um relógio e usava coletes. Não tinha como dar errado. À procura de alguns aforismos para decorar e, em algum momento da minha vida, citá-los de modo exemplar para meus filhos – todo pai precisa de uma dose de pedantismo bem regulada -, deparei-me com um trecho que realmente tocou o meu coração. Alice, perdida, pergunta ao Gato de Cheshire: “você poderia me dizer, por favor, que direção devo seguir a partir daqui?”.  O gato, poderosamente, responde: “Depende muito de aonde você quer chegar”. Depende muito de aonde eu quero chegar… Pode parecer exagero para alguns, mas naquele momento eu tive um lapso de ascese religiosa. Deparei-me com uma frase que havia sacudido violentamente minha vida espiritual. Aonde eu queria chegar, afinal? Qual caminho precisava tomar? Era uma pergunta importante, afinal todos caminhos levam para algum lugar, como se vê também na fala do gato.

Em outra ocasião, lendo “A divina comédia”, lembro-me da efusiva curiosidade que tive ao descobrir que Homero e Aristóteles haviam sido encontrados no Limbo. O Limbo fazia parte de um dos nove círculos do Inferno, reservado para os virtuosos, em sua maioria filósofos, que não tiveram a chance de conhecer a Palavra Revelada. Questionava-me sobre o que seria de mim, se o homem que havia influenciado São Tomás de Aquino estava no inferno. Certamente foi muito melhor que eu. A curiosidade é que neste lugar, segundo Dante, não havia sofrimento, tampouco regozijo. Mas ainda era parte do Inferno. Todo cristão, suponho, em algum momento de sua miserável vida pensou na real possibilidade de ir lá pra baixo. Quando criança, por exemplo, eu pedia a Deus em minhas orações que não me mandasse pra lá, porque eu não gostava de calor. Realmente prefiro o frio de Gramado ao calor de Brasília, mas eu estava pensando em termos materialistas e isso é próprio das crianças. O fato é que uma obra literária havia me feito lembrar de coisas importantes por que passei outrora. Caro leitor, o que estou tentando provocar é muito simples: literatura e religião dançam um bom tango argentino no qual os passos podem estar em perfeita sincronia.

Literatura e religião estão mais conectadas do que muita gente imagina. É difícil conceber hoje um mundo sem leitura e sem fé. Obviamente existem pessoas que não sabem ler e pessoas que vilipendiam as pessoas que rezam, mas não é sobre contingência, é sobre uma relação histórica construída solidamente ao longo dos anos e que dificilmente será destruída. A literatura é basicamente o exercício da leitura e da escrita, o que possibilita a formação do imaginário das pessoas. Daí sucede que um povo malformado literariamente é um povo com o imaginário corrompido. A religião é a intermediação entre o homem e o transcendente. A literatura parece florescer através de um exercício religioso, ao passo que a religião – pelo menos a cristã – parece florescer por meio de um exercício literário. Não acredita? Vamos olhar, então. O primeiro verso da provável mais influente criação literária de todos os tempos – a Ilíada – começa com um apelo ao divino: “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida”.  Logo de cara, no fundamento da mitologia grega, os deuses começam a se meter nas narrativas humanas. Tretar com homens, na verdade, sempre foi uma das preferências dos deuses ao longo da história. De Prometeu a Odin, os mitos nos mostram muitas faces interessantes dessa conexão entre o divino e o secular. Homero faz isso muito bem, pois a narrativa da Ilíada é repleta de participações mais do que especiais dos deuses na vida terrena. A literatura nasce com o apoio do transcendente, ainda que seja um transcendente figurativo e metafórico nesse caso. Mas o inverso também é real: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. A religião monoteísta mais importante do planeta surge de uma constatação literária: o verbo se fez carne. O logos se fez carne. Traduzir logos como verbo é muito acertado: sem o verbo, não há discurso. O verbo é palavra geradora, é movimento, é princípio. Não há oração sem verbo. Logo, não há texto sem verbo (ainda que objetivamente possa ser criado texto sem verbo, na pior acepção da palavra “texto”). Cristo é o verbo, o sustentáculo, o princípio, o caminho. O cristão cuidadoso não deveria se espantar com o fato de que Deus tenha querido que muitas pessoas o conhecessem por meio da literatura: e digo mais: não deveria se espantar com o fato de que essa literatura só foi possível por meio de uma tradição que se desenvolveu organicamente ao longo do tempo. O fato é que chegou até nós por meio da literatura, afinal as Sagradas Escrituras nada mais são do que um conjunto de textos literários, em diversos gêneros, intencionalidades e conexões possíveis. Por isso disse no início que “a religião parece florescer através de um exercício literário”.

A religião e a literatura mudaram nossas vidas, seja você um monge, um ateu, um escritor ou um analfabeto. E mais do que isso: religião e literatura continuam mudando as nossas vidas. Nada mais justo, então, do que dar espaço para que esses dois campos belíssimos da atividade humana dialoguem entre si. Ao ler um texto, podemos abstrair o que há de melhor ou pior naquelas palavras, podemos desenvolver virtudes ou vícios. Há alguma coisa no coração de quem lê que emerge para o mundo externo, para o mundo inteligível.  Se você já leu algum livro e achou que aquele parágrafo, frase ou palavra eram pra você, é porque a literatura começou a reverberar dentro de ti. O que há dentro do coração do homem e que pode ser revelado por meio da literatura é aquilo que pretendo escancarar ao longo de mais alguns textos. Como a literatura pode me ajudar com minha vida interior? Como a literatura influencia as pessoas? Como eu posso interagir com a literatura – seja lendo, seja escrevendo – de modo que eu consiga me entender mais amplamente como um ser humano? Como o ser humano pode ser ao mesmo tempo literário e religioso? Essas são algumas das perguntas às quais me proponho tentar responder.

No próximo texto, vou mostrar como a literatura pode ser nossa grande aliada – ou inimiga – em relação à vivência da castidade, e vou partilhar um pouquinho as minhas próprias lutas espirituais.

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Texto escrito por Lucas Tomaz, missionário da Rede de Missão Campus Fidei.

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