Discurso do Cardeal Ladaria ao Congresso internacional, com o título “O meu corpo me pertence”.
Humanae vitae: a audácia de uma encíclica sobre a sexualidade e a procriação humana.
Luis F. Card. LADARIA[1]
Saúdo cordialmente a Presidente da Fundação na Espanha, doutora Mónica López Barahona, e quero agradecê-la pelo convite a participar neste Congresso internacional sobre a Humanae Vitae organizado pela Cátedra Internacional de Bioética Jérôme Lejeune. Cumprimento também todos os participantes e espeço que tenham uma agradável passagem por Roma.
A encíclica Humanae Vitae se debruçou sobre os temas da sexualidade, do amor e da vida, os quais são intimamente interconectados. Trata-se de questões que tocam todos os seres humanos em todas as épocas. Por esse motivo, sua mensagem permanece relevante e atual ainda hoje. O Papa Bento XVI o expressou com as seguintes palavras: “Aquilo que era verdade antes permanece sendo verdade ainda hoje. A verdade expressa na Humanae Vitae não muda; antes, à luz das novas descobertas científicas, a sua doutrina se torna ainda mais atual e nos leva a refletir sobre seu valor intrínseco”.
O próprio Papa Francisco nos convidou, em sua exortação apostólica Amoris Laetitia, a “redescobrir a mensagem da encíclica Humanae Vitae de Paulo VI” como sendo uma doutrina que não só tem um valor intrínseco para a Igreja, mas também para a Igreja. Como uma doutrina que não só devemos conservar, mas que nos é proposta para ser vivida. Uma norma que transcende o âmbito do amor conjugal e que é uma referência para viver a verdade da linguagem do amor em toda relação interpessoal.
Foi ressaltada a audácia de Paulo VI ao resistir às pressões no sentido da aprovação do uso de contraceptivos hormonais nas relações sexuais dentro do matrimônio católico. Todavia, ao meu modesto parecer, a verdadeira audácia da encíclica é muito mais profunda. É de caráter antropológico, e é nesse sentido que esta encíclica pode ajudar-nos hoje a enfrentar os desafios antropológicos que se apresentam em nossa sociedade.
A encíclica, ao responder o problema sobre o uso dos contraceptivos, coloca em seu juízo moral uma ampla perspectiva antropológica, com uma visão integral do homem e de sua vocação divina. A encíclica fundamenta sua doutrina sobre a verdade do ato do amor conjugal com base na “conexão inseparável, desejada por Deus e que o homem não pode desfazer por sua própria iniciativa, entre os dois significados do ato conjugal: o unitivo e o procriativo”.
A antropologia dominante se opõe a esse fundamento, pois considera o ser humano como um construtor de sentido através de suas ações. Isso se traduz, no campo da sexualidade, na afirmação que o homem não pode se limitar a ser um sujeito passivo das leis do próprio corpo, mas que ele mesmo deve ser aquele que dá sentido à própria sexualidade. É a antropologia que antepõe a liberdade à natureza, como se fossem dois elementos inconciliáveis. Todavia, Paulo VI adverte que, antes da liberdade, existem significados, compreensíveis ao homem através da razão, que o homem não escolheu, e que orientam e regulam o seu comportamento.
Se o homem é capaz de reconhecer e interpretar os significados unitivos e procriativos do ato conjugal, poderá realizar corretamente a própria existência e levá-la ao seu cumprimento. Para a encíclica, a natureza não está em tensão com a liberdade, mas dá à liberdade os significados que tornam possíveis a verdade do ato de amor conjugal e lhe permitem a plena realização. Esta, a meu ver, é a verdadeira audácia da Humanae vitae e confere à encíclica sua radical atualidade.
Refutar a encíclica não significa apenas aceitar a moral da contracepção, mas também aceitar uma antropologia dualista que concebe a natureza como uma ameaça à liberdade e que considera que, manipulando o corpo, possam ser mudadas as condições de verdade do ato conjugal. A possibilidade de amar com o sexo, mas sem filhos, traduzir-se-á na realidade do sexo sem amor, que não apenas produziu uma banalização da sexualidade humana, mas também fomentou uma transformação da compreensão do que é a intimidade sexual e do que são as relações sexuais a nível social.
Só assim pode ser explicada a incapacidade da sociedade hodierna ocidental em reconhecer as diferenças morais entre a união sexual de um homem com uma mulher e a união sexual entre duas pessoas do mesmo sexo. Se é a pessoa que deve conferir significado à própria sexualidade através de seus atos livres, então não há nenhum problema admitir, por exemplo, relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que a única coisa a ser considerada é que aquela “união afetiva” seja livremente consentida. Assim, conforme essa perspectiva, é a liberdade que determina a verdade da ação.
Não se tem por necessário que o ato humano, neste ano, ato de amor conjugal, responda a um significado preexistente, natural ou estabelecido por Deus, mas simplesmente que seja um ato livre. A encíclica se opunha a esta antropologia e era em condição de afrontar os problemas que daí derivam com uma visão profética.
A negação da Encíclica não tem relação apenas com a visão do amor e da sexualidade, mas também com a percepção do próprio corpo. A antropologia contraceptiva é uma antropologia dualista que tende a considerar o corpo como um bem instrumental e não como uma realidade pessoal. A expressão que dá título a esta conferência, “meu corpo me pertence”, reflete esse caráter instrumental do corpo, este dualismo, no qual o corpo é reduzido à pura materialidade, e assim, a um objeto suscetível de manipulação.
Esta reificação do corpo não apenas causa a perda da verdade do amor humano e da família, mas trouxe uma alarmante diminuição dos nascimentos e uma multiplicação do número de abortos. A negação da indissolubilidade dos dois significados, que proclamava a regulação da natalidade com o uso dos contraceptivos, evoluiu para a manipulação artificial da transmissão da vida através de técnicas de reprodução assistida.
Primeiramente, aceitou-se a sexualidade sem filhos; depois, aceitou-se a produção de filhos sem o ato sexual. A vida produzida não é mais considerada, em si mesma, como um “dom”, mas como um “produto” e passa a ser avaliado em termos de utilidade. Esta utilidade, medidas pelas funções concretas, hoje é chamada de “qualidade de vida”. A qualidade da vida se torna assim um conceito discriminante entre vida digna de ser vivida e vida indigna de ser vivida e que assim pode ser suprimida: abortos eugênicos, eliminação de pessoas com deficiência, eutanásia de doentes terminais, e por aí vai. Tudo isso aparenta ser adocicado por uma certa “compaixão” para com aqueles que se encontram nessas situações (eliminação dos doentes), compaixão em relação aos seus parentes e a uma sociedade que economizará custos inúteis.
Esta manipulação do corpo, típica do relativismo moral e presente da antropologia contraceptiva, está presente em duas ideologias atuais: a ideologia gender e o transumanismo. Ambas partem da premissa de que não existe alguma verdade que possa limitar a atuação dos seus postulados ideológicos. Mais uma vez, a liberdade é colocada em oposição à natureza. Esta exaltação da liberdade, separada da verdade, faz com que ambas as ideologias apresentem o desejo e a vontade como garantes últimos das decisões humanas. Eis porque a continuação da frase “o meu corpo me pertence” será “e faço com ele o que eu quiser”. Este “o que eu quiser” é a expressão do desejo como único garante da decisão moral. Mas é exatamente o corpo humano que surge como um obstáculo, como um limite, à realização do desejo.
Se a ideologia do gender[2] pretende que os cidadãos construam socialmente o próprio sexo sobre a base de uma presumida neutralidade sexual, então deve negar uma verdade antropológica fundamental como o dimorfismo sexual (masculino e feminino) inerente à espécie humana. Eis porque a ideologia do gender nega que a identidade de uma pessoa esteja ligada ao seu corpo biológico: uma pessoa não se identifica com o seu corpo (sexo), mas com sua orientação. Apaga toda relação com o gênero binário para proclamar a diversidade sexual.
Ao mesmo modo, no transumanismo, a pessoa é reduzida à sua mente, ou melhor, às suas conexões neurais como fundamento de sua singularidade. A singularidade é então a essência da pessoa, sem o corpo, que a identifica e que pode ser transferida para outro corpo humano, para um corpo animal, para um Cyborg[3] ou um simples arquivo de memória.
A ideologia do gênero e o transumanismo são expressões desta antropologia, refutada pela Humanae Vitae, que nega ao corpo o seu caráter pessoal e o reduz a mero objeto manipulável. A identidade cultural, social e jurídica da pessoa não é intrinsicamente ligada à sua masculinidade ou feminilidade. A sua identidade pessoal é então baseada em sua orientação, isto é, sem conexão com o próprio corpo e sem relação com o corpo do “outro”, do sexo oposto. É uma antropologia que separou a vocação ao amor da vocação à fertilidade. Neste sentido é, fundamentalmente, uma antropologia a-histórica, que busca somente o momento presente, uma antropologia do carpe diem.
Nesta antropologia, o cyborg aparece como sendo a sua plena realização. É através do cyborg que se realizará a verdadeira emancipação biológica:
A) porque tornará possível a construção do corpo e do sexo através da biotecnologia;
B) porque o cyborg torna possível um mundo sem reprodução sexual humana; um mundo sem maternidade, o sonho do feminismo radical.
O cyborg projeta a ideologia de gênero em um futuro pós-gender e o transumanismo quer, através do cyborg, que também o futuro seja pós-humano.
A única resposta possível a essas ideologias é a redescoberta de uma antropologia integral da pessoa, como proposto na Humanae vitae, como unidade de corpo e alma; uma antropologia capaz de compreender a plenitude da liberdade na integração com a natureza humana. Somente deste modo os seres humanos poderão ser eles mesmos. Bento XVI o expressor da seguinte forma na Encíclica Deus Caritas Est: “O homem é verdadeiramente ele mesmo quando o corpo e a alma formam uma íntima unidade (…). É o homem, a pessoa, que ama como criatura unitária, de quem fazem parte o corpo e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade, é que o homem se torna plenamente ele próprio”.
No aniversário de vinte anos da publicação da Encíclica Humanae vitae, João Paulo II já havia revelado o seu caráter profético: “Os anos seguintes à Encíclica”, disse João Paulo II, “não obstante o persistir das críticas injustificadas e os silêncios inaceitáveis, puderam demonstrar sempre com mais clareza que o documento de Paulo VI é não apenas de grande atualidade, mas rico de significado profético”.
O significado profético da Encíclica encontra seu fundamento na concepção antropológica integral daquilo que significa a verdade do amor, da sexualidade e da vida. Uma antropologia integral que rejeita, por um lado, o reducionismo biológico do transumanismo, e por outro, a negação do corpo por parte da ideologia gender. A encíclica também é válida porque é a justa resposta, por parte do Magistério, às antropologias dualísticas que querem instrumentalizar o corpo e que não são novos humanismos, pós-modernos e seculares, mas verdadeiros e próprios anti-humanismos. A encíclica propõe uma antropologia da pessoa inteira, uma antropologia capaz de unir a liberdade com a natureza.
Também hoje se realiza aquilo que encíclica havia já anunciado sobre si: “É de prever que estes ensinamentos não serão, talvez, acolhidos por todos facilmente: são muitas as vozes, amplificadas pelos meios modernos de propaganda, que estão em contraste com a da Igreja. A bem dizer a verdade, esta não se surpreende de ser, à semelhança do seu divino fundador, “objeto de contradição” (cf. Lc 2, 34), mas nem por isso ela deixa de proclamar, com humilde firmeza, a lei moral toda, tanto a natural como a evangélica”. Nós também, em meio ao nosso mundo, somos chamados a ser um “sinal de contradição”, proclamando com humildade e firmeza a verdade do ser humano, do amor, da sexualidade e da vida.
Espero que este Congresso contribua no testemunho dessa verdade. Obrigado.
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Traduzido por Tiago Veronesi Giacone – Membro da Rede de Missão Campus Fidei.
[1] O cardeal prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé falou em uma conferência em 19 de maio de 2023, dedicada à audácia do documento do Papa Montini: ideologias que rompem o vínculo entre liberdade e natureza abriram caminho para a desumanização da sexualidade. Uma visão “antropológica integral” sobre o amor e a sexualidade humana, entendida de acordo com o plano de Deus, que 55 anos depois de sua publicação continua a propor uma sublime verdade negada por décadas de “antropologia contraceptiva”, que dividiu aquela visão unificada. Esse é o valor da Humanae Vitae, a Encíclica de Paulo VI publicada em julho de 68, destacada pelo cardeal Ladaria..
[2] Ideologia de gênero
[3] Nota do tradutor: Um ciborgue ou Cyborg é um organismo dotado de partes orgânicas e cibernéticas, geralmente com a finalidade de melhorar suas capacidades utilizando tecnologia artificial. O termo deriva da junção das palavras inglesas cyber(netics) organism, ou seja, “organismo cibernético” (Wikipedia).