Em seu leito de morte, Lênin disse: “Para salvar nossa Rússia, o que precisaríamos… seria de dez Franciscos de Assis”. Lênin estava certo: São Francisco de Assis é um dos maiores santos da história da Igreja. Praticamente sozinho, ele ajudou a reavivar a Igreja no século XIII com a fundação da mendicante Ordem dos Frades Menores, os Franciscanos. Ele tinha muitos dons sobrenaturais enquanto místico e líder, bem como um relacionamento bastante especial com a natureza. Não surpreende que Dante¹ tenha dedicado um lugar a ele no Paraíso, chamando-o de “príncipe” com um “ardor todo Seráfico”. Além desses muitos dons, contudo, o êxito de São Francisco estava enraizado em seu desejo de viver uma vida que imitasse a de Jesus Cristo, particularmente do Cristo crucificado. Muitas pessoas, hoje em dia, erroneamente, pensam em São Francisco como sendo um homem de sandálias cujo maior legado foi atrair e brincar com os pássaros em todos os lugares. Na verdade, São Francisco viveu uma vida de conformidade radical e de união divina com a vida sacrificial de Cristo. Ao traçarmos a vida de São Francisco, podemos ver o modo como sua união divina com Cristo cresceu e se desenvolveu por meio de estágios sucessivos de martírio pessoal.
Assim como muitos jovens, especialmente aqueles pertencentes a famílias abastadas, Francisco, em sua juventude, era dado às vaidades da vida. A tradição afirma que ele amava vinho, comidas e festas, e vivia uma vida de prazeres. Os poemas líricos dos trovadores e os trovadores errantes também dominavam sua imaginação. Talvez eles tivessem despertado o seu desejo em ser um galante cavaleiro, lutando virilmente em uma cruzada distante. De fato, não demorou muito para que sua juventude o levasse até uma batalha, em 1202, contra uma cidade próxima inimiga, Perúgia. No confronto, o jovem Francisco foi ferido e levado cativo. Ele foi mantido na prisão por um ano, tempo em que desenvolveu uma longa doença. Finalmente, após sua libertação e os contínuos males, seus pensamentos começaram a se desviar das aventuras cavaleirescas e dos desejos mundanos. Ele então começou a passar longas horas em intensa oração, em exercícios espirituais e na contemplação de Deus. Essa foi a sua primeira conversão.
Foi nesse período que Francisco teve um milagroso encontro com um leproso. Ele havia compreendido em oração que Deus queria que ele negasse a si mesmo e domasse sua vontade própria. Com esse fim, sua consciência o advertia sobre sua forte aversão e desgosto para com os leprosos. Um dia, a tradição conta que, enquanto cavalgava pelo interior, deparou-se com um leproso. Recordando-se de sua resolução, ele foi ao encontro da pessoa aflita, deu-lhe algumas esmolas e beijou sua mão doente. Depois de subir em seu cavalo, ele se virou para olhar a pessoa novamente, mas não havia mais ninguém ali. Desse dia em diante, Francisco começou a visitar leprosos nos hospitais e em outros lugares indesejáveis, lavando suas feridas, beijando-os e comendo com eles. Com isso, ele começou um processo de desapego de si mesmo.
Enquanto rezava intensamente na Capela de São Damião, em 1205, e estando de joelhos diante de um grande crucifixo Bizantino, Francisco ouviu a voz de Jesus. Ele viu os lábios na imagem de Jesus se moverem, e ouviu a voz de Jesus dizendo a ele: “Francisco, vai e reconstrói a minha Igreja, a qual, como você pode ver, está caindo em ruínas”. Jesus falou isso três vezes. Francisco ficou extasiado pela visão milagrosa, e buscou começar a reparar, literalmente, a capela de São Damião. A princípio, ele vendeu algumas das posses de seu pai para pagar pelos reparos na capela. Depois, sob a direção de um Bispo, ele compreendeu que era errado ter tomado das riquezas de seu pai. Por fim, para a surpresa do Bispo, de seu pai e de muitas testemunhas, Francisco tirou suas finas vestes, pedaço por pedaço, e renunciou a todos os seus pertences, exceto a uma camisa de peles que ele tinha vestida. Com essa nudez, Francisco oficialmente se desapegava de seu pai e do mundo, e abraçava uma vida de pobreza.
Por muitos anos, Francisco viveu em um pequeno casebre, numa intensa vida de oração e severa disciplina corporal. Ele também pedia esmolas para continuar a reparar a capela e outras Igrejas. Depois de reparar São Damião, ele começou a reparar São Pedro da Spina, e depois, a Porciúncula, ou a Pequena Porção, dedicada à Nossa Senhora dos Anjos. São Boaventura, posteriormente, contou que a restauração que São Francisco fez nessas três igrejas simbolizava as três ordens que ele depois iria estabelecer: a Ordem dos Frades Menores, as Clarissas (para as mulheres) e a Ordem Terceira de São Francisco, para os leigos. Durante a missa na Porciúncula, ele ouviu a leitura do Evangelho: “Não leveis para a viagem nem bastão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro; tampouco tenhais duas túnicas” (Lc 9, 3). Isso causou um profundo impacto em Francisco, como se o próprio Jesus falasse com ele. Ele partiu com apenas uma túnica simples de camponês amarrada na cintura, e pregava a boa nova de penitência e salvação para todos que encontrava.
Francisco, o “pobre homem de Assis”, continuou a viver sua vida de renúncias e pobreza. Com o seu tremendo carisma e pregação, rapidamente ele começou a ter um grande grupo de seguidores. Eles também haviam se convertido à vida de pobreza radical de Cristo, de mendicância e serviço aos pobres, pregando o Evangelho. Sua vida de autossacrifício consistia em mortificações, penitências e oração. Em 1209, depois que o Papa Inocêncio III teve um sonho bastante real com São Francisco sustentando uma das basílicas papais, a de Latrão, ele aprovou a primeira Regra da Ordem. Eles tinham o corte de cabelo de tonsura e um hábito austero feito de tecido cinza, um capuz pontiagudo e um cordão com nós ao redor da cintura. Francisco foi ordenado diácono; em sua profunda humildade, ele não considerava a si mesmo digno de ser ordenado sacerdote. Uma vez que sua Ordem estava estabelecida, os frades viviam as regras de pobreza, castidade e obediência à Igreja Católica Romana.
Francisco sempre buscou evangelizar os outros e salvar almas, o que era manifesto em seu trabalho missionário. Em 1219, Francisco viajou com os cruzados para o Egito; não como um cavaleiro indo para a batalha que ele imaginara na juventude, mas agora como um missionário de Cristo. O Papa Honório III decretou a Quinta Cruzada para retomar a Terra Santa e Jerusalém. Desde sua conversão, Francisco estava vivendo um martírio espiritual e mortificações físicas. Agora, com os cruzados ao redor da cidade egípcia de Damietta, nos entornos de Cairo, Francisco estava pronto para entregar sua vida como um verdadeiro mártir por Cristo. Depois de alertar os cruzados que eles iriam perder a batalha e sofrer enormes perdas, eles atacaram mesmo assim. Quando as forças muçulmanas venceram a batalha, com aproximadamente 5 mil cruzados mortos e outros mil levados como prisioneiros, uma trégua foi proclamada. Foi nesse momento, com a batalha mais apaziguada, que Francisco e um de seus companheiros foram permitidos entrar no território dos Sarracenos e encontrar-se com o Sultão al-Malik al-Kamil.
Francisco, corajosamente, adentrou no território inimigo, preparado para morrer, armado somente com seu zelo por salvar as almas. Ele foi imediatamente espancado e acorrentado pelos Sarracenos, e levado até o Sultão. Lá, ele disse ao Sultão que havia ido como mensageiro de Deus para revelar a verdade do Cristianismo e salvar a alma do Sultão. Apesar da insistência dos Imãs em decapitar Francisco, o Sultão ficou movido pela preocupação de Francisco em relação a sua salvação eterna. Um dos companheiros de Francisco descreveu o Sultão, “aquela besta cruel”, que, em resposta a Francisco, “tornou-se doce”. Pela graça de Deus, permitiu-se que Francisco permanecesse por semanas na corte do Sultão, discutindo teologia e evangelizando-o. O Sultão se recusou a se converter ao Cristianismo, ao menos publicamente, e ser assassinado pelos seus seguidores, de modo que Francisco finalmente retornou ao acampamento cruzado, para o maravilhamento de todos. De acordo com a tradição oral, o Sultão se converteu em seu leito de morte e abraçou a fé de São Francisco. O companheiro de Francisco, Irmão Iluminado, disse que, depois de ouvir a pregação de Francisco, o Sultão “sempre passou a ter a fé cristã impressa em seu coração”. Como um último legado do encontro de Francisco, os Franciscanos posteriormente foram feitos custodes dos lugares sagrados cristãos na Terra Santa e no Oriente Médio, tarefa que eles têm até hoje. Depois de seu encontro com o martírio, São Francisco atualizou a Regra da Ordem em 1221, Regula non Bullata, capítulo XVI, sobre a viagem e evangelização em território muçulmano, citando o Senhor: “Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos” (Mt 10, 16). Suas recomendações eram para que corajosamente proclamarem o Evangelho de Cristo, ainda que isso significasse perseguição e morte.
Em 1224, São Francisco subiu uma montanha remota em La Verna para um retiro espiritual com jejum de 40 dias devido à festa de São Miguel. Na festa da Exaltação da Cruz, em 14 de setembro, enquanto contemplava a paixão e morte de Cristo, São Francisco teve a visão de um Serafim de seis asas pregado em uma cruz e voando em direção a ele. À medida que chegava mais perto, ele reconheceu ser Jesus com suas mãos e pés pregados na cruz. São Francisco compreendeu a visão no sentido de ele mesmo ser transformado pelo seu amor seráfico a Deus em uma imagem perfeita de Cristo crucificado. Acordando dessa visão, São Francisco percebeu que havia recebido as chagas de Cristo em seu próprio corpo, buracos nas mãos e nos pés, e uma ferida no lado. Ele havia recebido os sagrados estigmas como testemunha da unidade de espírito que ele tinha com Cristo, recordando as palavras de São Paulo, sendo talvez a primeira pessoa na Igreja a receber os estigmas: “Trago em meu corpo as marcas de Jesus” (Gl 6, 17). Pelos seguintes dois anos até a sua morte, São Francisco trouxe os estigmas como sinal para todos, reforçando o doloroso martírio sobrenaturalmente manifesto em perfeita unidade com a paixão de Cristo.
São Francisco abraçou os sofrimentos por amor a Deus e ao próximo. São Boaventura o cita quando diz: “Nada me faria mais feliz do que você me afligir de dor e não me poupar. Fazer a sua vontade é consolação suficiente, e mais que suficiente para mim”. Foi nesse ponto de sua vida que o santo compôs o “Cântico ao Irmão Sol”, incluindo o verso “Que sejas louvado, meu Senhor, por aqueles que perdoam por amor, e suportam as enfermidades e tribulações”. Tendo problemas para caminhar por causa das chagas nos pés, e estando já quase cego, o pobrezinho de Assis morreu na tarde de 3 de outubro de 1226. Em memória de sua conversão, e em perfeita imitação com a pobreza e morte do Senhor, ele pediu para ser colocado nu sobre o solo, ainda antes de morrer. Com seus últimos suspiros, São Francisco implorou que seus seguidores se segurassem firmemente no Evangelho e na fé da Igreja. Tendo feito isso, ele adentrou na recompensa eterna.
Meditando na vida de São Francisco, recordamos os estágios de martírio que ele passou por sua vida, desde renunciar às suas riquezas e posses, servir aos leprosos e aos pobres, colocar-se a si mesmo em perigo para evangelizar os muçulmanos, sofrer por causa de enfermidades, até finalmente receber as próprias chagas de Cristo. Mais do que qualquer um na história da Igreja, ele foi uma imagem perfeita de Cristo. São Francisco acreditava numa vida de sacrifício, pobreza e humildade. Foi o seu amor seráfico e sua humildade que o levaram a criar o primeiro presépio, ou cena da manjedoura, numa linda simplicidade e reverência em uma noite de Natal para a missa da meia-noite. Ele viveu toda sua vida imerso nesse grande amor pelo Senhor, em imitação à vida de Cristo. Ele também acreditava que o sofrimento vicário e redentor, quando oferecido a Deus, pode ser meritório pela salvação das almas. Como membros do Corpo de Cristo, somos chamados a completar em nós o que falta às aflições de Cristo e partilhar de sua obra redentora, pois, como disse Jesus, “onde eu estou, aí também estará meu servo” (Jo 12, 26). Estejamos lá também nós, com São Francisco, nosso irmão, honrando-o no dia de sua comemoração.
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¹ NT: Autor da “Divina Comédia”.
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Autor: Brian Kranick
É um escritor católico, mestre em Teologia Sistemática pelo Christendom College. Passou muitos anos trabalhando como analista na Intelligence Community e atualmente vive com sua esposa e seus três filhos em Pacific Northwest.
Fonte: Catholic Exchange
Traduzido por Tiago Veronesi Giacone – Membro da Rede de Missão Campus Fidei, servindo nos Núcleos de Comunicação e de Formação, além de atualmente participante do Grupo de Estudo YOUFAMILY em Brasília – DF.