Uma Bíblia sem Igreja?

Um dos princípios fundamentais da Reforma protestante é o da sola Scriptura, segundo o qual a Bíblia, e unicamente ela, constitui a regra de fé à qual um genuíno cristão deve-se ater [1]. É apenas e tão-somente nas Sagradas Escrituras, proclamam os sectários de Martinho Lutero, que se encontra a totalidade do depósito da Revelação divina: nelas estão fixadas, de uma vez para sempre, todas as verdades que Deus nos quis transmitir; ao interpretá-las, o fiel recebe diretamente do Alto, sem intermediários humanos de qualquer espécie, as luzes para a sua vida moral e religiosa. Com o Texto Sagrado em mãos, reafirmam eles, não há necessidade de autoridades nem de Magistério; basta folheá-lo seguindo os próprios critérios para embeber-se, em suas páginas inspiradas, da mais pura e autêntica pregação evangélica. Livro infalível não se sabe como nem por que razões, cada protestante recebe do seu livreiro um exemplar da Bíblia e crê devotamente trazer embaixo do braço o próprio “Verbo feito papel”.

Ao primado da Escritura vem somar-se, num contorcionismo lógico, o primado da fé individual, cujo mais notável instrumento de trabalho é o livre exame, uma revolução radical e de consequências nefastas no campo da hermenêutica bíblica [2]. Agora, é ao leitor, iluminado pelo Espírito Santo, que cabe determinar com certeza irrefragável o que a Palavra de Deus quer ou não dizer. A interpretação e a correta inteligência dos textos sagrados ficam assim submetidas ao capricho e às preferências da consciência individual de cada crente, que julga sentir, como que por “instinto”, onde está a única e verdadeira fé dada aos homens por Nosso Senhor Jesus Cristo. Rechaçando, pois, toda e qualquer autoridade que não a sua, Lutero fundou sobre um livro, furtado dos púlpitos de nossas igrejas [3], uma religião em que os mesmos escritos, lidos de modos os mais contrastantes, opõem, numa Babel de seitas, luteranos a calvinistas, batistas a adventistas, menonitas e pentecostais…

O drama dos protestantes, é claro, não se resume a dissidências internas; a própria lógica por detrás do monismo bíblico que lhes é característico termina por negar, ao fim e ao cabo, a autoria divina das Escrituras. Com efeito, ainda que, em suas origens, o protestantismo histórico não tenha rejeitado de todo o valor da Sagrada Tradição e de algum ensinamento oficial [4], o excessivo biblismo que com o passar do tempo se tornou a nota distintiva dos “reformados” continha, ao menos em gérmen, um problema tão insolúvel quanto inconveniente: se, como dizem, o único veículo por que nos chegam as verdades reveladas é a palavra escrita de Deus, como podemos chegar “à posse tranquila e certa da Escritura como livro divino” [5]? Trata-se de estabelecer, com base na Bíblia, a existência da mesma Bíblia como Revelação — um círculo vicioso que põe em xeque dois dados básicos da nossa fé: a inspiração do Texto Sagrado e, por conseguinte, a canonicidade dos escritos que o integram.

De fato, ainda que na Bíblia estivessem contidos todos os dogmas necessários à edificação e à salvação dos fiéis, ficaria por demonstrar pelo menos uma verdade, “pressuposta a todas as demais, que”, sem petição de princípio, não pode ser provada “com a autoridade exclusiva da Bíblia” [6], a saber: a existência da própria Escritura enquanto Palavra de Deus redigida sob a moção do Espírito Santo [7]. Disto já se pode formar uma ideia do quão insuficiente é a regra de fé protestante. Com efeito, devemo-nos perguntar, em primeiro lugar, de que maneira podemos saber com segurança quais são os livros inspirados, se em nenhum lugar da Bíblia nos é apresentado um catálogo exaustivo dos textos que a compõem. E mesmo que possuíssemos uma tal lista, como poderíamos ter certeza de que esses textos foram efetivamente ditados pelo Espírito Santo? Se remontarmos agora aos começos do cristianismo, quando os escritos do Novo Testamento, ainda em processo de formação, eram desconhecidos da maioria maciça dos fiéis, a próxima dúvida que nos há de surgir não pode ser outra: aonde iam os primeiros cristãos haurir os ensinamentos de Jesus, que nada deixou escrito [8]? Por certo que não à Bíblia.

A essas dificuldades a Igreja tem respondido, desde o período da Reforma, com as palavras do seu divino Fundador: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16, 15). Jesus Cristo, é evidente, quis que a sua doutrina fosse preservada ao longo das gerações e fielmente transmitida a todos os povos, sem desvios nem corrupções humanas. Era conveniente, portanto, que estabelecesse um órgão de transmissão dos seus ensinamentos que, por um lado, os protegesse de uma leitura arbitrária e de um subjetivismo pernicioso e, por outro, estivesse ao alcance fácil e seguro de todas as inteligências, conforme as palavras de Timóteo: Deus “deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2, 4). E a “Escritura manifestamente não se acha nestas condições” [9]. Com efeito, como poderiam os fiéis mais simples, geralmente pobres e sem instrução, ter acesso aos Livros Sagrados, que, antes do desenvolvimento da imprensa, não se encontravam reunidos e bem trabalhados como nas edições modernas que hoje qualquer um pode ter à mão? Acaso desejaria o Senhor, durante quase quinze séculos, ver os pobres e miseráveis privados de um exemplar da Bíblia?

Ora, a fim de que a Boa-nova ressoasse, íntegra e incorruptível, em todos os ouvidos, Cristo mandou os Apóstolos pregarem-na de viva voz. Confiou-lhes, assim, o dever de ensinar aos povos e nações tudo quanto dEle haviam aprendido e recebido por meio do Espírito Santo. É justamente a essa pregação apostólica, por cujo intermédio a Palavra de Deus, numa sucessão ininterrupta, é conservada, exposta e difundida pela Igreja ao longo da história, que nós católicos chamamos Tradição, à luz unicamente da qual é possível ler, de forma correta, aquilo que Deus quis registrar na Escritura Sagrada. Disto resulta, primeiramente, que “a Igreja, a quem está confiada a transmissão e interpretação da Revelação, ‘não tira  da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas'” [10].

No entanto, é exclusivamente ao Magistério Eclesiástico, e não aos fiéis, que compete discernir o sentido autêntico do Texto Sagrado, uma vez que só à Hierarquia da Igreja, Corpo Místico de Cristo, foi dada a prerrogativa de participar do magistério infalível dAquele que é a sua divina Cabeça [11]: “Quem vos ouve, a mim me ouve” (Lc 10, 16). Pode-se dizer, nesse sentido, que é a Igreja o ambiente natural da Bíblia e é apenas na Igreja, sob a guia dos seus legítimos pastores — ou seja, do Papa e dos bispos —, que sabemos o que realmente querem dizer os escritos inspirados. Desta realidade, bem como da nossa particular insuficiência para compreender a Bíblia, encontramos alguns indícios já no Novo Testamento, quando vemos o Senhor ou os Apóstolos explicarem a Escritura a seus ouvintes. “Porventura entendes o que estás lendo?”, perguntou Filipe ao eunuco etíope. Ao que este lhe respondeu: “Como é que posso, se não há alguém que mo explique?” (At 8, 30s). “Começou então Filipe a falar e”, expondo-lhe o profeta Isaías, “anunciou-lhe Jesus” (At 8, 35). E Cristo, em Emaús, abrira o espírito a Cléofas e seu companheiro, para que compreendessem que era dEle que se falava em todo o Antigo Testamento (cf. Lc 24, 25-27.45).

Sem nada acrescentar ou tirar do depósito que lhe foi confiado por mandato divino, a Igreja orienta infalivelmente os seus filhos sobre o verdadeiro sentido dos textos bíblicos, prevenindo-os de qualquer interpretação que discorde do que por ela é proposto como sendo a reta compreensão da Palavra de Deus [12]. De fato,

[…] a Sagrada Escritura não pode ser plenamente entendida por quem não tenha a fé católica. Acontece perante a Bíblia o que acontece perante a figura de Jesus Cristo: quem não tiver a fé, só poderá ver em Jesus um homem evidentemente extraordinário e singular; mas com isso fica muito longe da verdade e, portanto, não entenderá Jesus Cristo quem não crer que é o Filho de Deus Encarnado, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o único Salvador e Redentor da humanidade [13].

Do mesmo modo, a Bíblia não poderá ser entendida, na profundidade do seu significado, por quem não se deixar iluminar pela luz da verdadeira fé, dando o seu mais fiel e humildade assentimento tanto aos livros sagrados, cujo autor principal é o próprio Deus, e àqueles que o mesmo Senhor constituiu como seus únicos e legítimos intérpretes, ou seja, ao Magistério daquela que é, à semelhança de sua túnica inconsútil, a depositária incorruptível dos tesouros divinos e o prolongamento, na terra, do seu próprio Corpo: a santa Madre Igreja, una, católica, apostólica e romana.


[1] Cf. A Boulenger, Manual de Apologética. 2.ª ed., Porto: Apostolado da Imprensa, 1950, p. 401, n. 332, a.[2] Cf. Miguel A. Tábet, Introducción General a la Biblia. 2.ª ed., Madrid: Palabra, 2004, p. 348.[3] Cf. Pe. Leonel Franca, A Igreja, a Reforma e a Civilização. 5.ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 1948, p. 212.[4] Cf. W. Henn, “Protestantismo”, in: AA.VV., Lexicon: Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003, p. 621. Para se verem livres das autoridades legítimas, os reformadores europeus trataram de proclamar o princípio do “livre exame” e da suficiência das Escrituras; quando porém se quiseram fazer ouvir, não temeram impor aos demais, com violência mais dura do que a que diziam combater, o jugo da doutrina que eles mesmos, do dia para a noite, haviam forjado (v. J. Balmes, El Protestantismo Comparado con el Catolicismo. 10.ª ed., Barcelona: Imprenta del “Diario de Barcelona”, 1921, vol. 1, p. 13).[5] Pe. Leonel Franca, Catolicismo e Protestantismo. 2.ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 1952, p. 155.[6] Id., 1948, p. 222.[7] Cf. Catecismo da Igreja Católica (CIC), n. 81; Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática “Dei Verbum” (DV), de 18 nov. 1965, n. 9 (AAS 58 [1966] 821; DH 4212).[8] Cf. CIC, n. 83.[9] Pe. Leonel Franca, 1948, p. 224.[10] CIC, n. 82; DV, ibid.[11] Cf. Catecismo de São Pio X, n. 882.[12] Cf. J. Monforte. Conhecer a Bíblia. Trad. port. de Luis M. Correia. Coimbra: Diel, 1998, p. 30.[13] “Introdução geral à Bíblia”, inSantos Evangelhos, da Bíblia Sagrada anotada pela Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra. Braga: Theologica, 1994, p. 36.

Fonte: padrepauloricardo.org

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