A Parábola do Bom Samaritano (15 º Domingo do Tempo Comum)

1. INTRODUÇÃO

As parábolas (comparações) são um recurso que o Senhor utiliza para enriquecer sua pregação, mas, sobretudo, para ensinar e transmitir uma mensagem que deve ser “decodificada” (interpretada) pelos mais simples de coração que escutam e acolhem sua Palavra. As parábolas ilustram temas diversos do reino de Deus e podem ser catalogadas segundo a matéria tratada, porém, devem ser interpretadas segundo o contexto imediato e especialmente no conjunto das características do evangelho que as apresenta.

Lucas é o evangelho do Espírito Santo, da infância de Jesus, portanto, da Virgem Maria, da evangelização, da oração, mas especialmente da misericórdia. O que é misericórdia? Por parte do homem é uma mudança de mentalidade (metanoia em grego), mas por que ocorre isto? Porque Deus oferece suas entranhas maternas para transformar através do perdão ao pecador arrependido (teshuva em hebraico). Quer dizer, a misericórdia é a capacidade que Deus tem de salvar o homem por meio do perdão dos pecados, no útero de sua Igreja onde é curado e renovado pela Palavra e pelos Sacramentos.

2. EVANGELHO

O fragmento do evangelho nos apresenta uma parábola exclusiva de Lucas, que é uma resposta e uma explicação a uma pergunta de um homem letrado, sobre o que se deve fazer para “herdar” a vida eterna. O personagem do relato é um homem preparado, conhece as escrituras e responde com o credo do povo judeu: o Shemá o que está escrito na lei, mas Jesus o surpreende, porque aparentando ser justo e querendo saber detalhes, o Senhor o deixa desconcertado com a parábola que ilustra exatamente quem é o próximo. Esta mesma questão foi feita por um jovem rico ao Senhor: “que devo fazer…”, só que nessa ocasião, a resposta aparentemente completa revelou por parte do jovem a idolatria ao dinheiro, pois possuía muitos bens e por isso saiu entristecido.

Uma primeira coisa que deve ser destacada é que na pergunta do letrado aparece o verbo “herdar” e não  “ter”, sobre o que se deve fazer para adquirir a vida eterna. Neste sentido, o homem é consciente que não é uma conquista  pessoal, não é algo que se adquire pelas próprias forças, já que é um dom, uma graça, de fato, aparece como uma herança, algo dado e, portanto, não é mérito próprio.

Vamos no deter a partir de agora, em alguns elementos da parábola proposta pelo Senhor, para iluminar ao letrado que presume saber tudo – teoricamente e não na vida do dia a dia – sobre a lei e o tema crucial de quem é o próximo:

“Um homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes, que o desnudaram, espancaram-no e foram-se embora, deixando-o quase morto”. Jerusalém é a  cidade santa, fica no alto das montanhas de Judá e lá vão os peregrinos para participar da páscoa anual e rezar no templo. Já Jericó está no caminho de Jerusalém, é um pequeno povoado antiquíssimo e serve de parada às caravanas que vão à cidade de Davi. Este lugar é protagonista de uma façanha realizada pelos judeus no processo da conquista da terra prometida. No transcurso realizado de uma a outra cidade se escondem bandoleiros que assaltam e maltratam os peregrinos. Jesus devia ouvir crônicas da época sobre sucessos desta índole, que por sua vez são a matéria prima de suas geniais e criativas histórias.

“Por acaso, um sacerdote estava descendo por aquele caminho e, ao vê-lo, seguiu adiante pelo outro lado. E o mesmo fez um levita que chegou aquele lugar: ao vê-lo seguiu adiante pelo outro lado”. O sacerdote é um homem consagrado, dedicado ao culto e ao templo, faz parte de uma casta particular, tem acesso à educação, conhece a Palavra de Deus e eles são considerados e respeitados pelo povo, já que representa uma grande e importante autoridade religiosa. Na época de Jesus, o levita pertence – como descendente da tribo da qual deriva seu nome – ao grupo de colaboradores do culto no templo, ou seja, auxiliam os sacerdotes no lugar sagrado por excelência do povo de Israel. Estas duas figuras passam ante o homem ferido e não param para ajudá-lo, talvez sejam indiferentes por questões higiênicas e religiosas, já que não querem contaminar-se com um suposto cadáver, apesar de haverem estado nos ofícios sacros, neles se realiza uma advertência que o Senhor fez em outro momento, porque não captaram: “… aprendei o que significa: misericórdia quero, e não sacrifício” (Mt 9,13) ou pior ainda “…este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mc 7,6).

“Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele”. Os samaritanos são um grupo de judeus dissidentes e, portanto, considerados hereges, por isso podemos supor que ao ser mencionado como protagonista da parábola um homem da região da Samaria, isto deve ter causado uma convulsão nos sentimentos racistas e religiosos do letrado. Jesus sempre surpreende já que o relato faz um giro substancial, porque de quem menos se espera aparece um gesto de misericórdia que preserva e salva a vida do homem ferido da parábola. Por outro lado, é necessário anotar que esta tradução é péssima e muito pobre, porque no texto original grego em vez de dizer: “teve piedade dele”, o samaritano “sentiu compaixão” (fazer-se solidário e padecer com…), que é a maneira que tem o evangelho de descrever de forma exclusiva os sentimentos divinos, já que a compaixão é a outra face da misericórdia, ou melhor, outra forma de designar o amor de Deus (ágape).

“…aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo e, colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e disse-lhe: Cuide dele. Quando voltar lhe pagarei o que tiveres gasto a mais”. A descrição em detalhes dos cuidados, do tempo dedicado ao moribundo e os gastos assumidos para que se possa curar  deixam muito claro o que é a misericórdia e como está atitude contrasta os gestos do sacerdote e do levita.

“Qual destes três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”. Para o letrado dada a obviedade do desenlace da parábola, a resposta a sua pergunta – de fato, chamada tradicionalmente “bom samaritano” –, não pode ser outra que o estrangeiro e herege que agiu com compaixão e, por isso reconhecer isto deve havê-lo desconcertado muito. Definitivamente, o próximo é qualquer homem que se comporta como Deus se revelou em Jesus de Nazaré, independente do sexo, tipo biológico ou religião.

Bom Samaritano

3. ATUALIZAÇÃO CATEQUÉTICA

Na Tradição dos Padres da Igreja primitiva (Orígenes, Santo Agostinho, Santo Ambrósio e outros), esta parábola foi interpretada à luz do mistério da fé como uma síntese perfeita  da obra da redenção operada por Cristo.

Todos os detalhes correspondem a um aspecto da história da salvação: o homem que descia de Jerusalém para Jericó representa a humanidade; Jerusalém é o céu ou a vida íntima do homem com Deus; Jericó representa o mundo com todas suas grandezas e contradições; os ladrões são os demônios e as paixões que incitam ao mal que despojaram (spoliatus) o homem da graça divina e o maltrataram ferindo-o de morte (vulneratus), através da inclinação para o pecado; o sacerdote e o levita são a lei (Torá) e os preceitos humanos que no conseguem salvar ou curar o homem ferido; o bom samaritano  é Jesus Cristo, o Filho de Deus que se humanizou, e como estrangeiro percorreu o caminho dos homens exposto ao pecado e à morte, desta forma os Padres se perguntam: que haveria ocorrido ao pobre judeu, se o samaritano tivesse ficado em sua casa? Que haveria ocorrido a nossas almas se o Filho de Deus não houvesse empreendido sua viagem até o mundo, (até nós)?; por isso, movido por compaixão e misericórdia se aproximou do homem cheio de chagas, ou seja, fazendo-as suas; enfaixou suas feridas, no qual encontramos uma imagem da graça que regenera; o tratou com óleo e vinho que são símbolos dos sacramentos da Unção que cura e perdoa e da Eucaristia que alimenta e renova; carregou consigo o homem moribundo na cavalgadura (alusão ao mistério da cruz); o conduziu à pensão, que é imagem da Igreja, para ser regenerado na fé, porque o recomendou ao dono da pensão, que é o apóstolo; e finalmente, o bom samaritano pagou com duas moedas todos os cuidados que eram necessários para sua recuperação (o valor da redenção).

Se não tivermos escutado o anúncio da boa nova, que Deus nos ama como somos e não tivermos feito uma  experiência de fé na Igreja, não poderíamos ver como esta Palavra se cumpre em nossas vidas. Todos nós pecamos, ou seja, nos tornamos senhores de nossos atos e queremos ser deus de nossas próprias vidas (o pecado original que nos despoja da graça, a Jerusalém celeste); pecamos por ignorância, por fraqueza e, sobretudo, enganados pelo maligno (o antigo e verdadeiro ladrão).

Ficamos mortalmente feridos pelo pecado, talvez não tenhamos consciência de nossa dramática situação e ainda reconhecendo-a, nos temos dado conta que as boas intenções e propósitos não nos podem libertados da escravidão, dos vícios,  a não ser pela graça de Deus em Jesus Cristo. Tudo isso ocorreu porque escutamos uma pregação, porque Deus nos enviou anjos e cremos em seu amor gratuito, infinito e incondicional.

O Senhor se despojou de sua glória, carregou com nossas misérias, “quem não conheceu pecado, se fez pecado” como diz São Paulo (2Cor 5,21), pagou com seu próprio sangue e nos fez renascer preparando-nos para a plenitude. Cristo manifestou sua glória como Senhor arrancando-nos do poder do mal e dando- nos uma vida nova em sua Igreja onde os sacramentos nos curam, transformam e salvam.

A Igreja é, pois como afirma o papa Francisco, uma tenda de campanha em um campo de batalha ou um hospital – podemos imaginá-la desta forma? – onde fomos introduzidos moribundos pelo pecado. Não é uma casa de justos, nem o santuário dos perfeitos e imaculados, porque pela graça de Deus estamos em um processo contínuo de cura e recuperação. Nela a Palavra nos chama continuamente à conversão, recebemos a fé, somos divinizados por meio dos mistérios sacramentais, enfrentamos os combates da vida cristã e aguardamos a vinda gloriosa na esperança da fé de nosso Senhor Jesus Cristo.

Por tanto, quem é o próximo? É fundamentalmente o outro, porque o Filho de Deus se fez “próximo” e “próximo” (de proximidade) assumindo nossa pobre natureza humana no seio de Maria e salvando-a no altar da cruz. Jesus morreu e ressuscitou por amor a nós, nosso próximo e nos fez a todos irmãos, filhos do mesmo pai criador e doador de vida no Espírito Santo.

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AUTOR: Pe. Carlos Fernando Hernádez Sánches (Mestre e Doutorando em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana – Roma e professor do Seminário Arquidiocesano em Brasília-DF))

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