Alguns anos atrás, eu vi uma tirinha política que mostrava um padre perguntando a Tim Kaine (companheiro de chapa de Hillary Clinton em 2016) se ele rejeitava Satanás e todas as suas obras. Em resposta, ele pergunta ao padre: “Pessoalmente ou politicamente?”. O ponto da tirinha era que Tim Kaine se dizia um católico que apoiava o direito legal ao aborto e separava erroneamente sua fé de sua política sobre esse assunto. Ele diz que é pessoalmente contra, mas acha que as mulheres devem ter o direito de abortar seus bebês, se assim o desejarem.
Como muitos católicos pró-aborto, Kaine defende essa dupla política, dizendo que sua oposição pessoal ao aborto é uma crença religiosa e, como temos uma separação entre Igreja e Estado no país, ele não pode impor aos outros a sua crença religiosa. Isso, como muitas pessoas apelam, seria como forçar todo mundo a ser batizado ou ir à missa aos domingos. Ninguém apoiaria tais políticas; portanto, também não devemos forçar as pessoas a seguir os ensinamentos da Igreja sobre aborto.
A princípio, esse argumento pode parecer sólido; mas, na verdade, ele é baseado em um mal-entendido sobre o que a Igreja diz sobre o aborto. É verdade que o governo não deve impor crenças ou práticas religiosas a seus cidadãos, mas nossa oposição ao aborto não é apenas uma crença religiosa. Sim, a Igreja Católica (uma organização inegavelmente religiosa) ensina que o aborto é um pecado (um conceito inegavelmente religioso), mas reduzir o aborto a uma questão apenas religiosa, é descaracterizá-lo gravemente.
O que a razão pode conhecer
Para entender o que quero dizer, vamos começar com o que diz a Carta de São Paulo aos Romanos:
“Porquanto, o que se pode conhecer de Deus eles o lêem em si mesmos, pois Deus lhes revelou com evidência. Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras; de modo que não se podem escusar. Porque, conhecendo a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças… Pelo contrário, extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes obscureceu o coração insensato. São repletos de toda espécie de malícia, perversidade, cobiça, maldade; cheios de inveja, homicídio, contenda, engano, malignidade. São difamadores, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, soberbos, altivos, inventores de maldades, rebeldes contra os pais. São insensatos, desleais, sem coração, sem misericórdia. Apesar de conhecerem o justo decreto de Deus que considera dignos de morte aqueles que fazem tais coisas, não somente as praticam, como também aplaudem os que as cometem.” (Rm 1, 19-21.29-32)
Nesta passagem, Paulo está falando sobre a universalidade do pecado. Ele está explicando que, quando as pessoas rejeitam a Deus, elas descem cada vez mais fundo no pecado, e as pessoas que ele está descrevendo não precisam de nenhuma revelação especial de Deus para saber que o que estão fazendo é errado. De fato, todo o seu argumento aqui é baseado no que nós, humanos, podemos descobrir por nós mesmos simplesmente olhando o mundo ao nosso redor e refletindo sobre ele. Ele nos diz que não precisamos de revelação para conhecer a existência de Deus, nossa condição de criatura ou os preceitos morais (também chamados de “lei natural”).
A razão e os ensinamentos da Igreja
Curiosamente, enquanto a Bíblia diz que essas coisas podem ser conhecidas sem a ajuda da revelação divina, a Igreja, ainda assim, ensina sobre elas. Por exemplo, o Credo Niceno-Constantinopolitano, que os católicos recitam alguns domingos na missa, professa que o Deus único é “criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”, e essa crença é reiterada no Catecismo da Igreja Católica (CIC 279). Além disso, a Igreja sempre proibiu atos como assassinato, roubo e adultério, que todos sabemos que são errados.
E, a própria Igreja reconhece isso. Seguindo a sugestão de São Paulo, ela ensina que não precisamos de nenhuma revelação especial para conhecer Deus (CIC 36) ou a lei moral (CIC 1954).
Tornando as coisas mais fáceis
Mas por que a Igreja faz isso? Por que ela não se limita a ensinar coisas que só podem ser conhecidas através da revelação divina? A resposta é que apenas porque algo é possível, não significa que seja fácil. Embora seja possível conhecer Deus apenas pela razão, a maioria das pessoas não conhece os argumentos filosóficos para a Sua existência. De fato, a maioria nunca tenta aprendê-los; portanto, sem o auxílio da revelação divina, Deus provavelmente seria um conceito estranho para essas pessoas. Da mesma forma, podemos teoricamente saber diferenciar o certo do errado com perfeita precisão apenas pela razão, mas na prática isso raramente acontece. Simplesmente existem muitas maneiras de cometer erros em nosso raciocínio moral; portanto, deixados por nossos próprios meios, inevitavelmente cometeremos pelo menos alguns.
É por isso que a Igreja ensina coisas que podem ser conhecidas através da razão. Como é difícil corrigir tudo por conta própria, a Igreja intervém e utiliza sua autoridade dada por Deus para nos ajudar a ter certeza sobre esses assuntos. Como o Catecismo explica:
“É por isso que o homem tem necessidade de ser esclarecido pela Revelação de Deus, não somente no que diz respeito ao que excede o seu entendimento, mas também sobre ‘as verdades religiosas e morais que, de si, não são inacessíveis à razão, para que possam ser, no estado actual do gênero humano, conhecidas por todos sem dificuldade, com uma certeza firme e sem mistura de erro’” (CIC 38).
Não apenas religioso
E é por isso que o aborto não é apenas uma questão religiosa. De acordo com os ensinamentos da Igreja, o aborto “é gravemente contrário à lei moral” (CIC 2271). Esse ensinamento é “baseado na lei natural e na Palavra de Deus escrita” porque o aborto é “contrário à Lei de Deus, a qual está escrita em todo coração humano, que pode ser conhecida pela própria razão e que é proclamada pela Igreja” (Evangelium Vitae 62). Em outras palavras, a Igreja diz que não precisamos de nenhuma revelação especial de Deus para saber que o aborto é errado. É uma daquelas coisas sobre as quais a Igreja ensina, embora possa ser conhecida por razões humanas, sem ajuda.
É por isso que muitas pessoas argumentam contra o aborto estritamente por motivos filosóficos e científicos, sem qualquer recurso à religião ou à revelação. Por exemplo, Robert George e Christopher Tollefsen, dois importantes filósofos católicos, escreveram um livro argumentando contra o aborto utilizando somente argumentos não religiosos, e há toda uma organização chamada Secular Pro-Life que é dedicada ao combate ao aborto por motivos puramente seculares e não religiosos.
Não impondo nossa fé
Consequentemente, quando realmente entendemos os ensinamentos da Igreja, podemos ver que se opor ao aborto não é como forçar as pessoas a serem batizadas ou ir à missa aos domingos. Essas são práticas puramente religiosas que conhecemos apenas por revelação, e se Deus não tivesse nos falado sobre elas, elas nunca passariam pela nossa cabeça. Mas a questão do aborto é diferente; é mais como os ensinamentos da Igreja contra assassinato e roubo. Ninguém em sã consciência diria que se opõe às leis contra matar e roubar, porque não querem impor suas crenças religiosas aos outros. Não, esses são preceitos da lei moral, coisas que podem ser conhecidas sem a ajuda da revelação, para que o governo possa promulgar leis contra essas práticas.
Da mesma forma, a imoralidade de matar um feto no útero também pode ser conhecida à parte da revelação divina, de modo que o governo também pode proibir o aborto. Por causa disso, nós, católicos, que nos opomos ao aborto, não estamos tentando impor nossas crenças religiosas aos outros. Estamos apenas agindo de acordo com a lei moral, que todos, católicos e não católicos, podem compreender.
Permanecendo fiéis
Por tudo isso, é claro que os católicos não podem ser pessoalmente contra o aborto, e publicamente a favor dele. Aqueles que mantêm essa posição, ou não entendem os ensinamentos da Igreja sobre o assunto ou deliberadamente o pervertem para se adequar a seus próprios fins. De qualquer maneira, nossa fé não deixa espaço para apoio político a atos que são gravemente contrários à lei moral; portanto, não podemos permanecer fiéis à Igreja enquanto defendemos um direito legal ao aborto.
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Autor: JP Nunez
JP Nunez é um apaixonado por teologia desde o Ensino Médio. Ele tem mestrado em teologia e filosofia (com concentração em bioética) pela Universidade Franciscana de Steubenville, e passou três anos no programa de doutorado da Universidade Católica da América em estudos bíblicos antes de perceber que a academia não é onde ele quer estar. Durante seu tempo em Steubenville, ele trabalhou por dois anos como estagiário no Centro de Teologia Bíblica de São Paulo, onde suas responsabilidades incluíam responder a questões teológicas e ajudar a formatar e editar seus estudos sobre as Escrituras.
Fonte: Catholic Exchange
Traduzido por Ludmila Giacone – Membro da Rede de Missão do YOUCAT BRASIL, como Voluntária no Núcleo de Tradução, Formação e participante do grupo de estudos YOUFAMILY.