O Papa Leão XIII redigiu uma análise perspicaz de três tendências que tanto o alarmaram quanto apontaram para problemas futuros. Ele escreveu sobre essas suas três preocupações em 1893 na Encíclica do Santo Rosário intitulada Laetitiae Sanctae (sobre a Santa Alegria). O Papa expôs as três áreas que o preocupavam e ofereceu os mistérios do Santo Rosário como remédio para elas. Vejamos como ele descreveu os problemas e, em seguida, consideremos o que ele nos propôs como solução. Seu ensinamento estará em negrito e itálico. Minhas observações estarão aqui em texto simples e vermelho.
“Os males que mais perigosamente minam o bem comum parecem-nos ser principalmente os três seguintes: “aversão à vida humilde e laboriosa; o horror ao sofrimento; o esquecimento da vida futura” (Laetitiae Sanctae, 4)
Problema 1: A AVERSÃO À VIDA HUMILDE E LABORIOSA
“Lamentamos … quando se começou a descurar os deveres e as virtudes que formam o ornamento da vida simples e comum. De fato, daí se segue que, nas relações domésticas, os filhos, intolerantes de toda educação que não seja a da moleza e da volúpia, recusam arrogantemente a obediência que a própria natureza lhes impõe. Por esse mesmo motivo os operários se afastam do seu próprio mister, fogem do labor, e, descontentes com a sua sorte, levantam o olhar a metas demasiado altas, e aspiram a uma inconsiderada repartição dos bens. Ao mesmo tempo dai se segue o afanar-se de muitos que, depois de abandonarem o torrão natal, buscam o bulício e as numerosas seduções da cidade…” (Laetitiae Sanctae, 5).
Uma das verdades que nos liberta é a de que a vida é difícil. Juntamente com o progresso, podemos experienciar – e de fato experienciamos – algumas provações, trabalhos árduos e contratempos. Poucas coisas de verdadeiro valor chegam até nós sem um custo significativo. Perceber e aceitar que a vida é difícil é libertador, pois minimiza e até apaga muitos dos nossos ressentimentos. Hoje, muitos esperam que a vida seja doce e suave o tempo e inteiro e, quando ela não o é, ficam zangados e ressentidos; alguns até ameaçam ingressar com processos judiciais. É comum, hoje, pensar na felicidade como um direito dado por Deus. Nossos fundadores (Nota do tradutor: O autor se refere aos fundadores dos EUA e à sua constituição) reconheceram a busca da felicidade como um direito, mas muitos acham que a felicidade em si é um direito. Quando não estão alegres, o sistema, de alguma forma, falhou com eles. Muitos esperam viver com poucos riscos e com tudo sendo conquistado facilmente. Esse tem sido um dos fatores do crescimento da influência do Estado. À medida que a insistência em uma vida confortável cresce e o trabalho árduo começa a parecer uma demanda irracional, esperamos que o Estado alivie nossos fardos e ofereça conforto e felicidade; e tornamo-nos menos dispostos a trabalhar arduamente por isso. Em vez disso, achamos que felicidade e conforto são coisas a que temos direito.
As expectativas irreais são ressentimentos iminentes. Com expectativas nada realistas, as pessoas rapidamente tornam-se ressentidas. Nossos antepassados de apenas 150 anos atrás tinham noções diferentes. Eles também buscavam a felicidade, mas em grande parte esperavam encontrar isso no Céu. Muitas das antigas orações católicas revelam uma concepção deste mundo enquanto um lugar de trabalho e exílio, um vale de lágrimas onde suspiramos e ansiamos por estar com Deus. Muitos católicos daqueles tempos viveram vidas difíceis e curtas; eles dispunham de muito menos conforto que hoje. Não havia eletricidade e nem água tratada, os remédios eram poucos e muito menos eficazes. O entretenimento era limitado, as casas eram menores e o transporte e locomoção, restritos.
Vivemos tão bem em comparação a eles, e, mesmo tendo mais conforto, há poucas evidências de que somos mais felizes. De fato, parecemos mais ressentidos, provavelmente porque temos expectativas maiores – muito maiores. Como fora observado pelo Papa Leão XIII, os jovens se ofendem com a disciplina e parecem esperar ser mimados. A maioria dos pais parecem mais dispostos a satisfazê-los, enquanto se esquivam do seu dever de corrigir, pois isso traria tensão e dificuldade.
O valor do trabalho duro e a satisfação que vem dele parecem estar perdidos na maioria das pessoas hoje. O Cardeal Theodore McCarrick costumava a aconselhar a nós padres que, se não estivéssemos cansados na hora de dormir, algo estava errado. Todos nós precisamos relaxar e descansas, mas o trabalho duro traz mais satisfação aos momentos de descanso.
As altas expectativas geram descontentamento. Nós realmente insistimos em viver em uma fantasia de que este mundo é, ou pode ser, o paraíso; nunca será. Uma estratégia melhor é aceitar que a vida é geralmente difícil, e enfrentar suas dificuldades com coragem. Embora seja uma dura verdade, aceitá-la traz paz.
Em resposta a esse primeiro problema, o Papa Leão recomenda nossa atenção aos mistérios Gozosos do Rosário e, em particular, para uma meditação sobre as lições implícitas do lar em Nazaré:
“Eis diante do nosso olhar a Casa de Nazaré, onde toda santidade, a humana e a divina, colocou a sua morada. Que exemplo de vida comum! Que perfeito modelo de sociedade! Ali há simplicidade e candura de costumes; perpétua harmonia de almas; nenhuma desordem; respeito mútuo; e, enfim, o amor … que se alimenta na prática dos próprios deveres, e tal que atrai a admiração de todos. Ali não falta a solicitude de se proporcionar a si mesmos tudo quanto é necessário à vida, mas com o “suor da fronte”, e como convém àqueles que, contentando-se com pouco … Ora, estes exemplos de modéstia e de humildade, de tolerância da fadiga, de bondade para com o próximo e de fiel observância dos pequenos deveres da vida quotidiana, e, numa palavra, os exemplos de todas estas virtudes … Então os deveres do próprio estado não mais serão nem descurados nem considerados enfadonhos, mas serão, antes, agradáveis e deleitáveis; e a consciência do dever, imbuída de senso de alegria, será sempre mais decidida no … amor e na alegria … respeito e caridade” (Laetitiae Sanctae, 6-8).
Problema 2: AVERSÃO AO SOFRIMENTO DE QUALQUER NATUREZA
“O segundo mal funestíssimo … é a tendência a fugir da dor e a afastar por todos os meios as adversidades. De fato, a maioria dos homens não consideram mais, como deveriam, a serena liberdade de espírito como um prêmio para quem exercita a virtude e suporta vitoriosamente perigos e trabalhos … Ora, este agudo e desenfreado desejo de uma vida cômoda debilita fatalmente as almas, que, mesmo quando não se arruínam totalmente, ficam, sem embargo, tão enervados, que primeiro cedem vergonhosamente em face dos males da vida, e depois sucumbem miseravelmente” (Laetitiae Sanctae, 9).
Hoje, mais do que nunca, há uma quase total intolerância a qualquer tipo de sofrimento. Isso se dá ao fato de que nós, com sucesso, eliminamos a maioria do sofrimento do dia a dia.
Nós somos amplamente protegidos da natureza, os remédios aliviam grande parte de nossa dor e desconforto físico, eletrodomésticos e tecnologia avançada proporcionam uma conveniência sem precedentes e tornam o trabalho manual mais rotineiro praticamente desnecessário.
Isso nos leva à surreal expectativa de que todo sofrimento deve ser eliminado. É quase um desrespeito quando alguém sugere que algumas coisas devem ser suportadas ou que não é razoável esperar que o Estado, a ciência ou “alguém” elimine todo mal ou todas as formas de sofrimento.
Além disso, parece que não estamos dispostos a aceitar que acidentes aconteçam, e que infelizes circunstâncias ocorram. Em vez disso, exigimos mais e mais leis, algumas intrusivas e opressoras; empreendemos processos que desestimulam a própria tomada de risco que possibilita novas invenções, avanços médicos e técnicas cientificas.
Muitas vezes, responsabilizamos as pessoas por coisas sobre as quais elas têm pouco ou nenhum controle. As economias têm ciclos como os climas. Não se pode esperar que os governos e os políticos resolvam todos os problemas ou aliviem todos os encargos. Às vezes, as coisas simplesmente acontecem e não há ninguém para culpar e ninguém que possa conserta-lo.
A vida não é um quarto com paredes macias. Enquanto podemos e devemos tentar consertar riscos desnecessários e procurar aliviar os fardos, sofrimentos e tristezas, acidentes e dificuldades uns dos outros, todos esses fazem parte da vida neste vale de lágrimas. A aceitação dessa verdade leva a uma espécie de serenidade paradoxal. A rejeição e a indulgência na noção irrealista de que todo sofrimento é irracional leva a ressentimentos e a mais infelicidade.
Em resposta a esse segundo problema, o Papa Leão nos recomenda atenção aos Mistérios Dolorosos do Rosário.
“Isto se obterá se os homens, desde a sua primeira infância, e depois constantemente em toda a sua vida, se aplicarem, no recolhimento, à meditação dos mistérios dolorosos. Através destes mistérios vemos que Jesus, “guia e aperfeiçoados da fé”, começou a fazer e a ensinar, a fim de que víssemos n’Ele próprio o exemplo prático dos ensinamentos que Ele daria à nossa humanidade, acerca da tolerância da dor e dos trabalhos … Ele mesmo abraçou tudo o que há de mais duro de suportar. Com efeito, vemo-lo como um ladrão, julgado por homens iníquos, e feito alvo de ultrajes e de calúnias. Vemo-lo flagelado, coroado de espinhos, crucificado considerado indigno de continuar a viver … Consideremos a aflição de sua santíssima Mãe … verdadeiramente “traspassada” pela “espadácia dor” (Laetitiae Sanctae, 10)
“Todo aquele que se não contentar com olhar, porém meditar amiúde exemplos de tão excelsa virtude, oh! como se sentirá impelido a imitá-los! Para esse, ainda que seja “maldita a terra, e faça germinar espinhos e abrolhos”, ainda que o espírito seja oprimido pelos sofrimentos, ou o corpo pelas doenças, nunca haverá nenhum mal causado pela perfídia dos homens ou pelo furor dos demônios, nunca haverá calamidade, pública ou privada, que ele não consiga superar com paciência … repare-se em que como resignação não entendemos a vã ostentação de um ânimo endurecido à dor, como o tiveram alguns filósofos antigos; mas sim … depois de pedir a Ele o necessário auxilio da graça, de modo algum recusa afrontar as adversidades; antes, alegra-se com elas, e considera um lucro qualquer sofrimento, por mais acerbo que seja. A Igreja Católica sempre teve, e tem ainda agora, insignes campeões de tal doutrina: homens e mulheres, em grande número, em todas as partes do mundo, de todas as condições. Estes, seguindo as pegadas de Cristo, em nome da fé e da virtude suportam contumélias e amarguras de todo gênero, e têm como seu programa, mais com os fatos do que com as palavras, a exortação de S. Tomé: “Vamos também nós, e morramos com Ele” (Jo. 11, 16).” (Laetitiae Sanctae, 11)
A cruz é parte dessa vida, mas Cristo deixou claro que ela nos destina à glória se a levarmos de bom grado e com fé.
Problema 3: ESQUECIMENTO DA VIDA FUTURA
“O terceiro mal para o qual é preciso achar um remédio é particularmente próprio dos homens dos nossos dias Com efeito, os homens dos tempos passados, mesmo quando com excessiva paixão procuravam as coisas terrenas, contudo não desprezavam totalmente as celestes; antes, os mais sábios entre os próprios pagãos ensinaram que esta nossa vida é um lugar de hospedagem e uma estação de passagem, antes que uma morada fixa e definitiva.
Ao contrário, muitos dos modernos, embora educados na fé cristã, procuram de tal modo os bens transitórios desta terra, que não somente esquecem uma pátria melhor na eternidade bem-aventurada, mas, por excesso de vergonha, chegam a cancelá-la completamente de sua memória, contra a advertência de S. Paulo: ‘Não temos aqui uma cidade permanente, porém demandamos a futura’ (Heb. 13, 14)” (Laetitiae Sanctae, 13).
Eu me impressiono cada vez mais como as pessoas quase nunca pensam no Céu. Mesmo os que vão à Igreja falam pouco disso; padres raramente pregam sobre. Nossa maior preocupação parecer ser tornar este mundo o mais confortável e prazeroso possível. Mesmo em nossa chamada vida espiritual, nossas preces indicam preocupações mundanas: Senhor, conserte meus problemas financeiros; melhore minha saúde; me dê um emprego melhor. É quase como se estivéssemos dizendo “Torne esse mundo agradável o suficiente e eu apenas ficarei aqui.” Não é errado orar por essas coisas e nem é errado trabalhar para que este mundo se torne melhor, mas nosso verdadeiro lar é o Céu e devemos procurar ansiosamente por alcançá-lo. Nós devemos meditar sobre o Céu frequentemente, e o mais profundo anseio de nossa alma deve ser estar com Deus para sempre. Em vez disso, tememos envelhecer; nossa cultura tenta manter a morte escondida. Deveríamos ansiar para ver Deus. É claro que seria bom terminar algumas coisas que começamos, mas, com a aproximação do Céu e da presença de Deus, devemos ficar felizes que os anos passem mais rápido. Cada dia que se passa significa que estamos mais próximos de Deus!
Nossa prosperidade nos enganou para que tenhamos um amor doentio por esse mundo. Um amigo do mundo é inimigo de Deus (Tiago 4,4). Estamos distraídos e facilmente nos esquecemos que esse mundo é passageiro; todos morreremos. Somente um anseio adequado pelo Céu pode corrigir o absurdo que um amor obsessivo por este mundo estabelece em nossa alma.
Medite sobre o Céu sempre! Leia a Bíblia, como Apocalipse 1 e 4-5, 20-21. Peça por um desejo mais profundo de Deus.
Em resposta a esse terceiro problema, o Papa Leão nos recomendou atenção aos Mistérios Gloriosos do Rosário como remédio para ambos: nosso amor doentio por esse mundo e o esquecimento do Céu.
“Desses mistérios, com efeito, brilha na mente dos cristãos uma luz tão viva, que nos faz descobrir aqueles bens que o nosso olho humano nunca poderia perceber, mas que Deus ― assim o cremos com fé inabalável ― preparou “para aqueles que o amam”. Deles aprendemos, além disto, que a morte não é um esfacelamento que tudo perde e destrói, mas sim uma simples passagem e uma mudança de vida. Aprendemos que o caminho do céu está aberto a todos; e, quando observamos Cristo que volta ao Céu, recordamos a sua bela promessa: “Vou preparar-vos o lugar”. Aprendemos que haverá um tempo em que “Deus enxugará toda lágrima dos nossos olhos; em que não haverá mais nem lutos, nem pranto, nem dor, mas estaremos sempre com o Senhor, semelhantes a Deus, porque o veremos como Ele é, bebendo na torrente das suas delícias, concidadãos dos santos”, em feliz união com a grande Mãe e Rainha. Uma alma que se nutra destas verdades deverá necessariamente inflamar-se delas e repetir a frase de um grande. Santo: “Oh! como me parece sórdida a terra quando olho o Céu”; deverá necessariamente alegrar-se ao pensamento de que “um instante de um leve sofrimento nosso produz em nós uma medida eterna de glória”. (Laetitiae Sanctae, 15 e 16)
Aqui, então, estão os três diagnósticos e os três remédios. É interessante que as raízes desses problemas já eram evidentes em 1893. Quão mais forte é a pressão deles sobre nós um século depois! Como é bom termos um médico de almas que nos ajuda a dar nome aos demônios que nos afligem. Nomeando um demônio, temos mais poder sobre ele e podemos prever seus movimentos facilmente.
- O nome do primeiro demônio é “preguiça” e “desgosto pelo trabalho árduo”. Pelos alegres mistérios da vida do Senhor, vá embora.
- O nome do segundo demônio é “recusa em sofrer” e “ressentimento para com a cruz.” Pelos mistérios da paixão do Senhor, vá embora.
- O nome do terceiro demônio é “esquecimento do Céu” e “amor doentio pelo mundo passageiro”. Pelos mistérios gloriosos do Senhor (e também de Nossa Senhora), vá embora.
Leão XIII – um Papa que mudou a Igreja
Autor: Monsenhor Charles Pope
Fonte: Community in Mission
Traduzido por Rodrigo Mourão – Membro da Rede de Missão do YOUCAT BRASIL como Voluntário nos Núcleos de Tradução, Formação e participante do Grupo de Estudo YOUCAT DATING em Brasília – DF.