Faz um tempo que circula, não somente pela internet, um conjunto de opiniões que dizem que é melhor fazer um jejum de comportamentos e palavras do que propriamente um jejum de alimentos.
Sobre o pretexto de cultivar uma profunda conversão, mais interior e mais verdadeira do que simplesmente ‘deixar de comer’, algumas pessoas com ótimos argumentos afirmam que é melhor fazer algo pelo próximo (jejum de palavras) do que simplesmente algo por si mesmo (jejum de alimentos). É melhor que haja uma mudança de atitudes do que a repetida atitude de jejuar. Que aparentemente não muda em nada o ser humano.
É correto pensar: ‘É melhor que haja uma mudança de atitudes do que a repetida atitude de jejuar’?
É sempre oportuno observar outras formas de penitência para nossa santificação, mas será que deixar de lado o jejum de alimentos é algo conveniente e realmente maduro para a nossa fé cristã? A partir de uma análise antropológica vamos buscar dar respostas a estas questões.
As Sagradas Escrituras nos apontam aspectos humanos
Podemos falar do homem sobre diversos pontos de vista. Do ponto de visto filosófico, psicológico, médico, político, sociológico… A antropologia é mais uma destas formas de se observar o homem. É um termo, porém, que se tornou hoje um tanto quanto equívoco hoje em dia. É evidente que o objeto de estudo (da antropologia) é o homem, mas sobre qual ótica devemos olhar? [1]
Acrescentamos o adjetivo ‘teológica’ para especificar de que modo vamos abordar esta antropologia. Trata-se de um ponto de vista em que se descreve o homem em sua relação com o Deus Uno e Trino. É com a ajuda da ‘Antropologia Teológica’ que vamos dar uma resposta concreta à questão do jejum.
Antropologia Teológica : Trata-se de um ponto de vista em que se descreve o homem em sua relação com o Deus Uno e Trino.
A narrativa do Gênesis, no capítulo 3, é uma das partes da Revelação que nos ajuda a compreender o homem e sua natureza. O hagiógrafo nos relata que o demônio seduz a mulher e lhe apresenta o fruto da árvore e esta olhando para o fruto da árvore que está no meio do jardim “viu que a árvore era boa ao apetite“[2] (Gn 3, 6) ou ainda “viu que a árvore era boa de comer“[3].
Existem desejos desordenados no homem
Este desejo de Eva em relação ao que é ‘bom ao apetite‘ ou ‘bom para comer’, após o pecado original, se tornou o que chamamos de Concupiscência da Carne. Santo Tomás no ajuda a entender que se trata de uma concupiscência natural que é ‘incidente sobre o necessário ao sustento do corpo, quer quanto à conservação do indivíduo, como a comida, a bebida e coisas semelhantes; quer quanto à conservação da espécie, como o é o caso da função reprodutora.’ (Suma Teológica, I-II, q 70, a.5)
O apetite desordenado de tais coisas (do sustento ao corpo e da conservação do indivíduo) se chama concupiscência da carne. (Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica)
Enzo Bianchi, um monge e teólogo, em um artigo escrito no ano de 2013[4] fala de três dominantes fundamentais que atuam das esferas humanas do amar, do ter e do querer: a dominante do eros (libido amandi), a dominante da posse (libido possidendi), a dominante do poder e da afirmação de si (libido dominandi).
A este libido amandi podemos associar este desejo do apetite desordenado. O objeto desta concupiscência é tanto a gula quanto o sexo desordenado, que é o vício da luxúria.
Resumindo estes últimos parágrafos em poucas palavras: Existe no homem algo natural que é um desejo próprio de sustentar o corpo (comer) e de manter a humanidade (fazer sexo), mas após o pecado original, estes dois desejos ficaram desordenados. Ou seja… existe algo próprio da natureza do homem (que não podemos retirar do homem) mas que está inclinada para o mal.
Existe no homem algo natural que é um desejo próprio de sustentar o corpo (comer) e de manter a humanidade (fazer sexo), mas após o pecado original, estes dois desejos ficaram desordenados.
Este é o ponto principal deste artigo: Compreender que o pecado da gula – a desordem de comer – é fruto de uma ferida na natureza do homem. Ou seja, não podemos pensar que seja um aspecto isolado ao ser humano. É algo que pertence a nossa essência (a necessidade de se sustentar – comer), mas foi desfigurada pelo pecado original.
Afinal das contas, como combater a Gula? O jejum é uma das respostas.
A gula é sem dúvida um pecado. Não é simplesmente sentir fome ou mesmo sentir prazer pelos alimentos, pois a gula não é todo e qualquer desejo de comer e beber, mas somente os desejos desordenados.
A gula não é todo e qualquer desejo de comer e beber, mas somente os desejos desordenados.
Santo Tomás, na parte da Suma que fala da temperança, coloca em questão se a abstinência seria uma virtude, e nos ensina que ‘A moderação no comer, relativamente à quantidade e à qualidade, é regulada pela arte da medicina, quanto à saúde do corpo; mas, quanto aos afetos internos, em relação ao bem da razão, é regulada pela abstinência’[5]
Na questão seguinte, especificamente sobre o jejum, nos fala dos motivos pelos quais devemos praticar o jejum:[6]
Primeiro, para reprimir as concupiscências da carne. Donde o dizer o Apóstolo, no lugar citado: Nos jejuns, na necessidade, porque o jejum conserva a castidade. Pois, como diz Jerónimo, sem Ceres e Baco Vênus esfria, isto é, pela abstinência da comida e da bebida a luxúria se amortece.
Segundo, praticamos o Jejum para mais livremente se nos elevar a alma na contemplação das sublimes verdades. Por isso, refere a Escritura que Daniel, depois de ter jejuado três semanas, recebeu de Deus a revelação.
Em terceiro lugar para satisfazer pelos nossos pecados. Por isso, diz a Escritura: Convertei-vos a mim de todo o vosso coração em jejum e em lágrimas e em gemido.
Santo Agostinho nos ensina ainda que “O jejum purifica a alma, eleva os sentidos, sujeita a carne ao espírito, faz–nos contrito e humilhado o coração, dissipa o nevoeiro da concupiscência, extingue os oradores tia sensualidade acende a verdadeira luz da castidade.”
O jejum purifica a alma, eleva os sentidos…
O jejum tem sua fundamental importância.
Lembremos mais uma vez que existe uma desordem na natureza humana. Uma desordem nos apetites e desejos por comer e beber. É algo que estará sempre em nós pois são consequências do pecado original.
Ainda é possível alguém questionar: “Mas podemos combater os males da desordem sem fazer jejum. Basta uma firme disposição do nosso coração”. Esta pessoa pode até ter razão, mas se esquece de duas coisas importantes:
A primeira é que uma das maiores consequências da culpa original é que o nosso corpo passa a mandar em nossa alma. Os desejos carnais muito facilmente tomam conta de nossa razão. Combater o corpo é portanto um caminho mais seguro, como apontam os Santos da Igreja.
E a segunda coisa é que o ser humano é um composto de corpo e alma. Não é possível trabalhar apenas um aspecto (a alma, a disposição) e deixar o corpo jogado à sorte do mundo.
Quer jejuar palavras e alguns comportamentos? Os faça com muito amor. Mas como vimos ao longo do texto, o jejum de alimentos tem sua importância antropológica.
Jejuar é muito mais do que práticas externas. É uma atitude da inteligência e da alma. Mais que deixar de comer ou beber certos alimentos ou mesmo comer com moderação, o importante é fazer ” tudo para a glória de Deus” (1 Cor 10, 31).
Jejuar é muito mais do que práticas externas.
Referências Principais:
[1] LADARIA, Luis. Introdução a Antropologia Teológica. Loyola: São Paulo. 1998.
[2] Tradução da Bíblia de Jerusalém.
[3] Tradução da TED (Tradução Ecumênica Bíblica)
[4] Contro le tre “libido” resistere, resistere, resistere – Enzo Bianchi. Disponível em: http://www.lastampa.it/2013/09/29/esteri/vatican-insider/it/contro-le-tre-libido-resistere-resistere-resistere-QBnWh2W573BT2vXWZj1rYJ/pagina.html
[5] Suma Teológica, II-II, q. 146, a.1
[6] Suma Teológica, II-II, q. 147, a.1