Viático

Aquelas paredes brancas com luzes opacas lembravam-lhe os tempos em que era criança. À época, corria pelos quintais de dona Sebastiana, como era conhecida sua mãe na vizinhança, contemplando as três paredes alvas da casa, que pareciam encaminhá-lo para a rua. A rua era a sua liberdade. Liberdade de poder sair de uma casa que parecia não lhe pertencer. Sentia-se um intruso naquele ambiente. Estranhamente um intruso em seu próprio território. 

Rápidos são os lampejos de memória.

As paredes brancas também o faziam recordar dos primeiros beijos. Foi numa dessas paredes brancas e pichadas ao fundo da escola onde conheceu Maria, sua finada esposa. Maria era do tipo envolvente e perspicaz. Ela o havia provocado na época da adolescência, insinuando que era preciso algum tipo de influência quase preternatural para que ela se apaixonasse por alguém. Foi uma aposta. Aposta sem jeito. Decidiram apostar que não iriam se apaixonar. De tanto apostarem, apaixonaram-se no primeiro olhar obstinado. Eles se encontraram e se desencontraram nas conversas traumatizadas em que compartilhavam as histórias sobre o passado familiar difícil. Foi assim que nos pequenos diálogos surgiu o encantamento. Ele amou aquela mulher com todas suas forças. Amou-a prometendo que seria inteiramente dela. E ela amou-o prometendo que seria inteiramente dele. 

Maria, porém, partiu cedo demais. Vítima da fatalidade que chega sem avisar. Hoje, trinta anos depois de despedir-se de Maria, encontrava-se debilitado num projeto de quarto hospitalar. Definhava. A vida que uma vez estivera em suas veias agora era fluido irregular e monitorado. Encontrava-se sozinho, apesar dos vários profissionais que o acompanhavam, com olhares apressados e urgentes. Durante grande parte da sua vida esteve sozinho. O encontro com Maria foi uma mudança substancial na sua vida. Agora encontrava-se solitário novamente, diante de homens desconhecidos. Dois ou três o monitoravam com um olhar de pena e, talvez, até mesmo de um certo desprezo. Um ser humano vislumbrado em sua mais vil condição biológica de existência, vulnerável até mesmo em suas maiores fortalezas; um ser humano taciturno cujo desconsolo e tristeza imperavam inexpugnavelmente devido às escolhas que tomou após a morte de sua amada Maria; um homem cuja convalescência não haveria de chegar. Ele definhava ao encontro da “Indesejada das Gentes”.

Ali, naquele estado quase vegetativo, ele conseguiu lembrar-se de sua filha. Lembrou-se instantaneamente do cabelo moreno escuro corredio que não enganava: era o cabelo de Maria. Lembrou-se também da primeira vez que a filha se machucou seriamente, e de como ela havia chorado copiosamente com um olhar urgente direcionado para ele, implorando por socorro. Ele tomou-a nos braços e fez-lhe carinhos, com uma voz que suscitava calmaria… Lembrou-se, alhures, do mesmo olhar desesperado da filha implorando por respostas paternas após a morte da mãe. Ao contrário da primeira vez, o pai não havia corrido em direção à filha. Ao contrário da primeira vez, o pai silenciou-se numa condição de pós-existência. O pai não foi em socorro da prole. Não havia calmaria, apenas tempestade. Estava demasiado atônito para socorrer. Ele precisava de socorro. Pouco a pouco o olhar de confiança da filha começou a esmorecer… perder brio e confiança. A confiança filial num pai que larga tudo e vai correndo para levantar os seus que estão caídos no chão não existia mais. A filha insistiu por muito tempo, numa tentativa vã de incutir um pouco de alma naquele homem desolado. O olhar do homem era de morte. Aos poucos a distância foi aumentando. As ligações, diminuindo. As visitas, rareando-se. Aos poucos o amor foi sendo dilapidado. Aos poucos o amor foi… 

Apesar de todas as lembranças, ele não conseguiu se lembrar do nome da filha. De repente ele sentiu ódio por sua condição, sentiu raiva de sua doença. Amaldiçoou seu corpo, revoltou-se contra o Pai… e sentiu pena de si. “O nome… o nome… lembre… lembre… não… lembre…”. E então lágrimas surgiram no rosto que estivera impassível por trinta anos. A multidão de rostos indiferentes virou-se por um segundo para contemplar aquela cena desconhecida. Quase houve compaixão.  As lágrimas desciam devagar, como se estivessem lutando contra a gravidade. As lágrimas recusavam-se a cair, obstinadas e irresolutas, como se aquilo fosse uma ferida iminente no orgulho acumulado ao longo do tempo. Contra a natureza não se luta, não obstante. Caíram. Caíram numa profusão que quase fez com que ele se lembrasse… Em vez disso, lembrou-se da primeira Ave-maria que ela rezou sozinha. Das palavras engasgadas, dos primeiros sinais de dislalia, dos primeiros sinais de uma piedade sincera e infantil. Do Santo-anjo cantado… Maria, ao lado, ensinando pacientemente a articulação entre as palavras. Maria inclinando-se para beijar a fronte de sua filha, subindo o cobertor em direção aos membros superiores da pequenina, o sorriso sincero e cansado da criança… O olhar de Maria iluminava e conduzia aquela casa. 

Uma dor forte interrompeu seus pensamentos.

De repente estava de volta a contemplar as luzes opacas do projeto de quarto. Os olhos à sua volta cada vez mais urgentes. Queria ver sua filha. Queria ver Maria. Mas até mesmo a visão começava a ficar turva. 

A meia distância, como num clarão vertiginoso e inesperado que surge para salvar, logrou enxergar alguém diferente, trajando um hábito. Os olhares ao redor já estavam descrentes e inesperadamente todos pararam os movimentos apressados. A urgência cessou. A dor intensificou-se, latejante. Abriram um pequeno corredor para que o padre pudesse passar, carregando consigo algo tão pequenino quanto um pé de recém-nascido. Lembrou-se do sapato azul-marinho que comprara para a crisma de sua filha e de como ela estava linda naquele dia.  A dor acusou mais uma vez. Maria, com os olhos vívidos, estava ali perto dele. Não era a Maria com olhar indiferente e de morte, era a Maria que havia amado e por quem havia devotado toda a integralidade do seu ser. O padre tocou-lhe a fronte, em seguida tocou-lhe as mãos. Disse algumas palavras que já não eram inteligíveis. E então um movimento em direção à sua boca aconteceu. O gosto era seco e insosso, mas aos poucos lhe trouxe uma paz que há muito ele não tinha. E então a dor foi arrefecendo como o calor do sol que se põe no fim da tarde. Os olhos semicerrados já não viam, mas contemplavam.  E então lembrou-se do que desejava. E tudo ficou bem. 

Texto escrito por Lucas Tomaz, Missionário da Rede de Missão Campus Fidei.

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