Marta e Maria (16 º Domingo do Tempo Comum)

1. INTRODUÇÃO

O relato da primeira leitura nos apresenta o patriarca Abraão recebendo uma inesperada visita de três seres misteriosos, que se revelam como enviados de Deus. A reação do ancião nos Carvalhos de Mambré e tudo o que dispõe e ordena para a hospitalidade destes homens, manifesta um coração generoso e acolhedor: dar-lhes o melhor e fazê-los sentir como em sua própria casa.

Abraão é filho de sua cultura e realidade nômade, já que na inclemência do deserto – próprio da grande península arábica e grande parte da antiga Mesopotâmia – os gestos e atitudes hospitaleiros são sagrados. O “outro” – ou os outros – vem de parte de Deus e por isso a hospitalidade será vista na interpretação do ciclo de Abraão, como causa da fecundidade de Sara, que de seu ventre estéril dará à luz e realizará a promessa de uma descendência para o iniciador da história da salvação e que é a imagem da fé no Antigo Testamento.

2. EVANGELHO

Betânia é uma pequena aldeia das montanhas de Judá, muito próxima da cidade de Jerusalém, a uns três quilômetros entre esta capital e o povoado de Jericó. Este termo significa em aramaico “casa de frutos” ou “casa de aflição”. Sabemos pelos evangelhos que Jesus visitou em várias ocasiões este lugar (Mt 21,17; Mc 11,1; 11,12; Lc 10,38; Jo 11,1) e que era amigo desta família formada por Lázaro, Marta e Maria. Além disto, ali também vivia Simão o fariseu, onde em uma ocasião, os pés de Jesus foram ungidos por uma mulher chamada Maria (que poderia ser a irmã de Marta ou a Madalena).

Podemos imaginar esta casa, como um lugar onde o Senhor descansava de suas viagens e peregrinações à cidade santa. Jesus saía desde a Galileia – onde morava e realizava a maior parte de seu ministério público – e quando chegava à Judéia se hospedava em Betânia. Esta aldeia também ocupa um lugar especial, sobretudo, na semana que serve de prelúdio ao mistério da paixão do Senhor (onde, certamente, ressuscitou ao irmão varão destas duas mulheres).

Talvez pelo fato de Marta recebê-lo em sua casa – segundo os costumes da época – podemos supor que ela era a mais velha dos três irmãos. E seguindo a tradição judia, já que a “hospitalidade” era sagrada – como aparece indicado nos livros do Pentateuco e na primeira leitura –, acolher e atender a um irmão na fé ou a um forasteiro era um dom e uma graça enorme para a casa e a família que recebia a uma pessoa. De fato, o pecado de Sodoma e sua destruição se devem especialmente a pecados contra a hospitalidade com os enviados do Senhor. Marta, imediatamente obedece aos princípios da hospitalidade de seu povo e se dedica a preparar as coisas com os afazeres próprios, para que a estada do Senhor seja a mais agradável possível enquanto está entre elas.

Chama atenção a atitude de Maria, já que ela está sentada aos pés de Jesus, que na linguagem bíblica significa a “postura do discípulo do Senhor”. Mas também encontramos outros sentidos em alguns textos nos quais aparece esta expressão no Novo Testamento: no evangelho de Lucas é a postura daquele que foi agraciado em Jesus Cristo sendo curado, portanto, libertado da escravidão do mal. Por isso aparece esta postura que indica “sentar-se para contemplar ‘escutando’ a fonte da graça e do amor” (8,35). E no livro dos Atos dos Apóstolos – também escrito por Lucas –, Paulo indica com essa expressão a instrução religiosa e moral, ou seja, a formação que não é improvisada, porém realizada ao longo dos anos com persistência e interesse (22,3). Podemos concluir então que “estar sentado aos pés” implica, por um lado, a posição do que foi curado do mal e, por outro, indica a um discípulo em um processo de formação da fé cristã. Portanto, podemos concluir que Maria foi curada por Cristo, por isso pode e sabe que a melhor coisa é estar aos pés do Senhor para escutá-lo.

Mas é necessário agregar também, que este gesto era próprio dos homens que podiam sentar-se para escutar os ensinamentos de seu mestre. Uma mulher não podia fazê-lo, já que ela não tinha o privilégio de estudar, nem muito menos estar perto de um homem nesta postura, porque os pés representam a intimidade. Novamente vemos aqui, como Jesus rompe os esquemas culturais e podemos imaginar, o escândalo que isto teria causado se tivesse sido visto pelos senhores da lei ou fariseus (como ocorreu com a unção da outra ou da própria Maria na mesma cidade de Betânia).

Pelo texto do evangelho notamos nas palavras de Marta a Jesus – quase como que lhe dando uma lição do que deve determinar e fazer – una enfática reclamação, é como se lhe dissera: “não é justo que minha irmã deixe de ajudar-me em todos os serviços que devem ser realizados!” ou “enquanto eu trabalho, ela está sem fazer nada e fica aos teus pés!”. Já a resposta do Senhor, indica que Maria escolheu a melhor parte, ou seja, “escutá-lo”, por isso aqui ressoa o versículo do salmo 94: “se hoje escutardes a sua voz não endureçais o coração!”. Não podemos deixar de notar que Jesus com uma familiaridade insólita, se refere à irmã mais velha repetindo seu nome: “Marta, Marta…”, não para reprová-la ou condená-la, porque também deve reconhecer sua dedicação e empenho em agradá-lo com a santa hospitalidade, mas para lembrá-la o que é o mais importante. Marta quer expressar seu amor através do serviço que realiza para acolher o Senhor, o problema talvez está na sua murmuração.

Marta e Maria

3. ATUALIZAÇÃO CATEQUÉTICA

Na longa tradição homilética e catequética da Igreja este breve texto de Lucas tem sido interpretado, talvez a partir destas palavras de Santo Agostinho:

«Estas duas mulheres, ambas amigas do Senhor, ambas dignas de seu amor, ambas suas discípulas, são figuras de duas vidas, a presente e a futura; uma laboriosa e outra ociosa; uma infeliz e outra abençoada; uma temporal e outra eterna».

Como duas formas de ser e atuar do homem frente a Deus. Posteriormente se consolidou – sobretudo com São Gregório Magno – na clássica distinção que chegou até nossos dias: a forma ativa e a forma contemplativa de viver. O monge romano que se tornou papa afirmou em seu momento:

«A vida ativa consiste em dar pão ao faminto, ensinar a sabedoria ao ignorante, corrigir ao que erra, reconduzir o soberbo ao caminho da humildade, cuidar do enfermo… A vida contemplativa, ao contrário, consiste, na verdade, em manter com toda a alma a caridade em Deus e do próximo, mas abstendo-se de toda atividade exterior e deixando-se invadir por somente o desejo do Criador…».

No entanto, é necessário esclarecer esta interpretação.

Marta representaria à chamada “vida ativa” e Maria a denominada “vida contemplativa”, isto para situar as duas formas de viver a consagração religiosa feminina na comunidade eclesial, ou seja, Marta é a figura das monjas que se dedicam à educação,  cuidado  dos  enfermos,  órfãos,  anciãos,  ex  prostitutas,  etc., e Maria é a figura das monjas de clausura, quer dizer, as carmelitas, clarissas, concepcionistas, etc., que se entregam à oração. Porém, essa não é a intenção do evangelho, já que como sabemos naquela época – e no momento da cristalização da mensagem do Senhor à forma escrita – a Igreja não estava estruturada e organizada dessa forma. O que quer nos dizer, portanto, este pequeno relato? Talvez possamos descobrir outro caminho.

A partir deste pequeno fragmento do evangelho podemos fazer umas reflexões sobre o “mistério da alteridade”. Que é isso? Podemos perguntar-nos, por que talvez esta expressão se refira a algum tema complexo da filosofia e devemos responder: “sim” e “não”, já que é algo que tem a ver com nossa realidade existencial e por isso profundamente humano, pois tem a ver comigo e contigo: quem é o outro?

A humanidade teve que esperar séculos para olhar para si mesma. De fato, o homem está condenado a não olhar para si mesmo, pode ver qualquer parte do corpo, menos seu rosto, pode observar seus membros, os diversos aspectos de sua forma corporal, mas não a si mesmo. É certo que, nos primórdios, o homem pôde descobrir e ter no reflexo da água certa noção de seu próprio rosto, mas demorou muito até que inventaram os espelhos. O espelho obviamente nos mostra as feições e detalhes de nosso rosto e do cabelo, mas não nos fala, não nos denuncia, não nos exorta e muito menos nos confronta, claro que nos revela as marcas de nossas emoções, as impressões da idade, mas não nos interpela. “Um espelho nunca refletirá a profundidade de nossa alma oculta em nosso rosto. São os outros quem nos revelam como somos”. Assim afirma o colunista espanhol Juan Arias, por isso à pergunta: quem é o outro? responde de forma categórica “o outro sou eu!”

Utilizamos essa reflexão para chegar  à  conclusão  de  que  Marta  e  Maria  são diferentes, como ocorre com cada ser humano, jamais encontraremos – nem na comunhão matrimonial – alguém igual a nós, talvez encontremos elementos comuns, mas nunca outra pessoa semelhante a nós. É curioso, mas a figura de Marta por sua atitude foi quase demonizada, porém, na tradição da Igreja, existe no calendário litúrgico (29 de julho) um dia dedicado à Santa Marta e não à Maria que “escolheu a melhor parte”.

Esta premissa a partir do evangelho nos permite sublinhar a importância simbólica do outro, algo profundamente indispensável para saber o que somos, sobretudo na sociedade atual – global e digital –, na que esse “outro” é visto cada vez mais como uma ameaça, um inimigo, especialmente se não pensa, atua e crê como nós, ou se sua pele não é da mesma cor da nossa.

O “outro” é o que nos permite conhecer o que somos. Através do “outro” – com suas limitações, defeitos e misérias – podemos descobrir realmente também nossa precária e pobre realidade. O “outro” é nosso verdadeiro espelho. Por que tantas dificuldades na convivência conjugal e nas diversas relações afetivas? Porque é o “outro” quem revela o que somos. Vejamos alguns exemplos: Se uma pessoa é lenta, a outra com a qual se relaciona descobre que é impaciente…, se uma pessoa se destaca em alguma questão financeira, intelectual ou artística a outra com a qual convive descobre que, lhe tem inveja ou que tem outro sentimento escuro que nasce deste reflexo, etc.

Portanto, o “outro” é um dom, ou seja, uma graça que nos permite conhecermo-nos afundar no profundo de nossa realidade e confrontarmo-nos para que à luz da fé possamos crescer e desejar a conversão do coração que nos leva à plena comunhão, porque o “outro”, não é a outra metade, e sim o que nos complementa com todas as suas diferenças e particularidades. Jesus Cristo é o “outro” que veio em nossa condição humana para revelar-nos o amor (ágape) gratuito, incondicional e infinito de Deus e salvar-nos da escravidão do mal, do pecado e, portanto, da condenação eterna. Jesus de Nazaré é o homem perfeito – o outro – que revela no desígnio de Deus quem somos, de onde viemos e para onde vamos.

Celebremos na santa Eucaristia dominical o dom que nos deu Deus em seu Filho, nosso Senhor e salvador e n’Ele reconheçamos a riqueza que representam todas as pessoas (outros) que estão ao nosso redor, com os quais nos alegramos, nos entristecemos, discutimos e nos reconciliamos no caminho da vida e na fé cristã.

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AUTOR: Pe. Carlos Fernando Hernádez Sánchez (Mestre e Doutorando em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana – Roma e professor do Seminário Arquidiocesano em Brasília-DF))

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