Sobre festas, marshmallows, amizades e afins

Ser pai implica algumas desvantagens. Você jamais pode comer marshmallow livremente em casa, por exemplo. Se o fizer, vai ter que dividir sua comida. E dividir comida é um saco, todo mundo há de concordar (com exceção dos nossos irmãos indianos). Você jamais poderá fazer uma maratona de série durante a madrugada também. A criança pode acordar a qualquer momento e, parafraseando Beto Guedes, sim, todo sono é sagrado. Não obstante essas questões, ser pai tem várias vantagens. Eu gastaria abundantes caracteres elencando-as. Restrinjo-me, porém, a uma delas: todo dia há uma história muito engraçada contada pelos pequenos. O riso não há de faltar na casa de um pai. A alegria é perene.

Ser pai é rir todos os dias dos seus filhos, para eles e com eles.

Minha esposa, Laíse, contou-me uma dessas pérolas pueris.

Maria Luna, a filha mais velha, aproximou-se taciturna e rebeldemente da mãe e iniciou este diálogo maravilhoso que a vós transcrevo:

– Mãe, eu não sou amiga de Jesus.

A mãe empalideceu. Acho que a Laíse só esperava esse tipo de conversa na adolescência, quando geralmente os jovens dizem para os pais que não querem mais frequentar a igreja.

– Por que diz isso, filha?

– Jesus não me convidou para o jantar especial que ele fez para os amigos dele.

Laíse riu.

Eu ri depois de ouvi-la contando o fato.

Maria Luna indignou-se. Ela estava profundamente chateada.

E ela estava corretíssima. Ora, como pode um amigo especial a quem depositamos muito amor não nos convidar para uma festa especial? Como pode um amigo a quem chamamos “Deus” e “Senhor” não nos invitar para celebrar uma festa preparada por ele mesmo? Já imaginou você não sendo convidado para a festa de aniversário da sua mãe ou do seu pai? Se isso soa-lhe razoável, há algo tremendamente descompassado na sua vida.

Jamais menospreze a sabedoria de uma criança.

Minha filha de quatro anos já compreendia que o amor supõe uma relação.  Ela não precisou de uma aula de filosofia patrística para aprender que não amamos aquilo que não conhecemos (não nos relacionamos com).

O amor é uma relação.

Jesus relaciona-se conosco de modo íntimo. É preciso dirigir o olhar atencioso para o ser amado. “Voltando-se o Senhor, olhou para Pedro. Então, Pedro se lembrou da palavra do Senhor” (Lc 22, 61). O olhar de Jesus constrange Pedro ao ponto deste chorar amargamente. Não é um constrangimento de quem se sente vilipendiado ou ofendido, é um constrangimento de quem se sente amado e não corresponde. O amor é uma relação. A quem temos dirigido nosso olhar?

Se amar é uma relação, o que dizer então do Amor dos amores? O Sumo Amor? O Sumo Bem? A Suma Beleza? Todos os transcendentais do ser apontam para o ser de onde derivam todos os outros seres: Deus. Como nos aponta São João, “Deus é amor” (1Jo 4, 8).

Conquanto Maria Luna não se sentir convidada, Deus a convida – e nos convida – todos os dias para o seu banquete. Cristo nos convida todos os dias para participar de sua festa, especialmente preparada para a humanidade, pessoalmente preparada para cada um de nós, em nossa individualidade e especificidade. Cada um de nós tem uma cadeira reservada para desfrutar desse banquete. Uma cadeira cara, paga a preço de sangue e lágrimas.

Há um profundo significado teológico no questionamento da minha filha de quatro anos. Para que o compreendamos de maneira mais adequada, é preciso analisar atentamente as palavras do próprio Cristo. “Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e vos darei descanso” (Mt 11, 28). Cristo nos chama a descansar N’ele. Antes de participar de uma festa, sabemos que há vários preparativos: fazer lembrancinha, cozinhar, organizar lista de convidados, trabalhar para poder comprar um vinho de qualidade. Bons vinhos são caros e ninguém quer tomar vinagre. Ademais, os preparativos para a festa são cansativos e, de certa forma, o dia da festa propriamente dito é uma forma de descanso, de alívio, de repouso. É o dia que esquecemos os nossos problemas e procuramos nos alegrar ao lado de pessoas queridas. Entretanto, participar de uma festa sem se relacionar com as pessoas pode ser algo bastante insosso e inapropriado.  Podemos até beliscar um queijo aqui e ali, mas se não estamos em espírito de comunhão, ficamos deslocados no banquete.  É por isso que Cristo nos exorta a permanecermos n’Ele. “Permanecei em mim, como eu em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanece na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim” (Jo 15, 4).

Não basta ir ao banquete. É preciso permanecer nele e permanecer com o dono da festa.

Ir apenas por ir não conta. Até Judas estava no baquete. Empanturrou-se.  Às vezes minha mente sobrevoa Jerusalém e tenta vislumbrar o rosto de Judas ao ouvir de Jesus que um de seus diletos iria traí-lo. Eu o imagino com os lábios carnudos em movimento, a gordura do cordeiro a descer de sua boca, chegando até sua barba. Contemplo-o com o vinho escorrendo pelo pescoço, tal como Denethor fizera em “Senhor dos Anéis”, um pouco antes de queimar-se por estar amargurado pela morte do filho e por vislumbrar a queda de Gondor. Imagino-o impávido, por vezes até mesmo irônico, sabendo do que se tratava o anúncio de Jesus. Redireciono o olhar e posso ver os rostos surpresos dos outros que compunham a mesa, incrédulos, efusivos…

Alguns apressados poderiam concluir que se pode ir a qualquer tipo de banquete onde haja alegria e muita comida, e que esse banquete seria onde permaneceríamos com Ele.  Outros ainda sustentam que podemos comer qualquer coisa. A relação, entretanto, supõe harmonia: fazer tal como Ele desejou que fizéssemos… “Fazei tudo que Ele vos disser” (Jo 2, 5).

“Podemos fazer o que quisermos, desde que estejamos felizes!”. Esbravejam os relativistas…

Cristo nos forma silenciosamente em suas escolhas e não escolhas…  Cristo é um anfitrião exigente, manda o convite, mas é ele quem escolhe o cardápio de sua festa. É ele quem ornamenta, quem convida, é ele quem faz os orçamentos, é ele quem escolhe as músicas, é ele quem direciona o roteiro da festa. Cristo não é o tipo “laissez-faire”, ele não é aquele cara que nos deixa à nossa própria sorte. Ele conhece nossas limitações e potencialidades. Ele sabe que eu e você somos vacilões.

As últimas linhas poderiam ser uma ótima introdução para “liturgia”. Cristo nos convida todos os dias para um banquete e o seu banquete pode ser desfrutado na Santa Missa.

“Tomou em seguida o pão e, depois de ter dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: “Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim” (Lc 22, 19).

O “fazei isto” é precisamente o convite gentil para que estejamos em comunhão com ele. O “Isto” é precisamente o cardápio escolhido por Cristo para que nos alimentemos. “Dar graças” é o modo litúrgico da ação. “Em memória de mim” é a garantia de que ele estará conosco. De modo especialíssimo, Cristo está conosco na Santa Missa. A Instrução Eucharisticum Mysterium nos ensina que a missa possui três realidades que convergem harmonicamente para um único propósito. A missa é ao mesmo tempo Sacrifício, memorial do Mistério Pascal do Senhor e é também Banquete. Pelo sacrifício, contemplamos todo o sofrimento de Cristo. Pelo Mistério Pascal, testemunhamos sua Paixão, Morte e Ressureição, alegrando-nos com Sua vitória na Cruz. Pelo Banquete, festejamos e nos fazemos Igreja, dizendo, junto ao apóstolo, “eis o Cordeiro de Deus” (Jo, 1, 36). Ninguém vai a um jantar para comer só salada (perdoem-me os vegetarianos), nós vamos para comer o que há de melhor, de preferência uma carne bem suculenta. O Cordeiro se oferece a nós despretensiosamente, esperando que rasguemos nossos corações, esperando que todos sentemos à mesa. Daí sucede a precisa observação feita por Scott Hahn, no livro “O Banquete do Cordeiro”, ao dizer que o céu é uma espécie de reunião familiar entre todos os filhos de Deus. Maria Luna já compreendia o que era ser Igreja aos quatro anos. Ser Igreja é participar do Banquete de Cristo!

Eu e a Laíse poderíamos ter tentando explicar esse fato para Maria Luna no momento exato em que ela não se sentia uma amiga de Jesus. Poderíamos ter mostrado para ela que Cristo é sim nosso amigo porque ele não nos deixa de fora de seu banquete, pelo contrário! Podemos ir a uma grande festa todos os dias e sentarmos ao lado de nosso grande amigo. A comicidade da situação impediu a nossa rápida percepção e a pronta intervenção. Tivemos de fazê-lo depois. Os olhos da criança brilham quando ela se sente novamente amada e querida, ao ponto de se perceber convidada para uma grande festa. Ela encontrou novamente o seu Amigo. Se você não tem filho, chame alguma criança para uma festa de aniversário e observe o brilho no olhar. Observe a magia acontecer.

O questionamento da Maria Luna me parece ser, na verdade, o principal questionamento que devemos ter neste mundo. Por trás dele, há o ápice do sentido de nossas vidas. Esqueça todos seus problemas, todos seus boletos, todas suas misérias e faltas por um instante. A pergunta a seguir é a mais importante da sua vida.

Queres participar do Banquete Eterno com teu amigo Jesus?

Jamais menospreze a sabedoria de uma criança.

Se o amor é uma relação e se é verdade que nós podemos optar por não nos relacionarmos com o Criador, seria impossível que Deus nos amasse – e não só isso, seria impossível que Deus fosse a fonte de todo o amor – caso  ele mesmo não se relacionasse de forma amorosa. Por isso Deus é trino. Na trindade há a relação perfeita que define o amor. Na trindade há o banquete derradeiro para o qual somos convidados a participar eternamente. Deus nos ama porque Ele amou primeiro. Somos capazes de amar porque Deus amou primeiro. Esse tipo de raciocínio está presente no pensamento dos grandes doutores da Igreja. Em uma publicação recente, o professor Sidney Silveira, por quem nutro muito carinho e admiração, apresentou-me um aforismo significativo, provavelmente inspirado em Santo Tomás, mas sem fonte confirmada: “o sentimento sente, o amor ama e quer amar”. O Amor quer nos amar!

O banquete na missa é o prenúncio do Banquete Eterno.  Maria Luna sabia que para ser amigo de alguém é preciso participar de sua festa. Não sei se você está compreendo a profundidade do que acabei de dizer, mas eu tenho de confessar que estou profundamente embevecido com essa verdade tão simples com a qual me deparei ao escutar as angústias de uma criança… “Deixai vir a mim os pequeninos” (Mt 19, 14).

Queres participar do Banquete Eterno com teu amigo Jesus?

O grande sentido da vida está nessa relação de amizade. Ser amigo de Jesus é querer estar com ele eternamente. É querer ser convidado todos os dias para Sua festa.  Ser amigo de Jesus é se sentir profundamente triste, tal como Maria Luna ficou, ao imaginar que há qualquer remota possibilidade de não irmos para a grande festa que Jesus nos preparou. É ser um com Jesus. É ser o parceiro d’Ele.

Que hoje nós possamos ter o olhar e a rebeldia de uma criança, que olha para o seu bolso, identifica um convite especial, empertiga-se em posição de saída e vai ao encontro do seu amigo, e vai ao encontro de sua festa especial, sem se importar com o que os adultos vão dizer. Amém.

Ah, nas minhas histórias geralmente sempre tem a participação de todos os filhos. Alguns devem estar se perguntando agora: onde estava Maria Aurora e Estevão? Maria Aurora disse algo engraçado e teológico também? Estêvão olhou magicamente para você enquanto você falava de Jesus?

Dessa vez não. Eles só estavam chorando desesperadamente mesmo. Deixo-os para outras histórias. Vantagens e desvantagens da paternidade.

Texto escrito por Lucas Tomaz, missionário da Rede de Missão Campus Fidei.

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