Um clássico esquecido: “Os Noivos”, de Alessandro Manzoni

Foi como católico devoto que Manzoni escreveu “Os Noivos”. No coração da história está o trágico noivado de Renzo e Lúcia, separados por intrigas e circunstâncias políticas. A história acompanha o infeliz casal em sua missão aparentemente impossível de ficar juntos.

Se a “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, pode ser aclamada de forma realista como o maior poema já escrito, outra grande obra-prima da literatura italiana, “Os Noivos” (I Promessi Sposi), de Alessandro Manzoni, pode ser aclamada como o maior romance de todos os tempos. A segunda afirmação surpreenderá aqueles que talvez não tenham ouvido falar do clássico de Manzoni. Ainda assim, apesar da relativa negligência com que tem sido tratado, ele rivaliza com “Dom Quixote”, “Orgulho e Preconceito”, “Um Conto de Duas Cidades”, “Guerra e Paz”, “Os Irmãos Karamázov” e quaisquer outros pretendentes à distinção literária. 

Tal avaliação do mérito da obra certamente está de acordo com a opinião da maioria dos italianos que ficam perplexos por causa da relativa falta de reconhecimento da obra magna de Manzoni em todo o mundo. O livro é uma parte indispensável do currículo das escolas de ensino médio italianas, e o uso do dialeto florentino por Manzoni na obra ajudou a estabelecer e formalizar a língua italiana moderna. Além disso, por ser mais acessível que a “Divina Comédia”, é a obra mais lida de toda a literatura italiana e, com exceção da Comédia de Dante, a mais criticada e analisada por especialistas.

Alessandro Manzoni retornou à fé católica depois de ter se perdido na juventude na busca pelo secularismo anticatólico em voga na época, e ao qual aderiam os seguidores de Voltaire. Tendo retornado à fé católica com vigor e fervor renovados, começou a escrever poesia religiosa e redigiu um tratado acadêmico sobre moralidade católica. Foi, portanto, como católico devoto que Manzoni começou a trabalhar em “Os Noivos”, e sua própria musa estava comprometida (betrothed) com as verdades essenciais que resplandecem no romance. 

Publicado pela primeira vez em 1827 em três volumes e, posteriormente, em 1842, numa versão revisada e definitiva, “Os Noivos” é um romance histórico que narra eventos ocorridos dois séculos antes. No coração da história está o trágico relacionamento de Renzo e Lúcia, os noivos, que são separados por causa de intrigas e circunstâncias políticas. A história acompanha o infeliz casal em sua missão aparentemente irremediável de se reunir.

Num cenário marcado por uma tirania mesquinha e pela turbulência política, e em meio à desordem das turbas revolucionárias e do miasma de ruas tomadas pela peste, a história dos amantes é interligada a histórias de grandes pecadores e santos ainda maiores. Porém, a maior força do livro é a miríade de personagens diversificadas que Manzoni apresenta ao leitor, uma miscelânea do que há de melhor e pior na humanidade, algo muito semelhante ao que Chaucer apresenta ao leitor no Prólogo Geral dos “Contos da Cantuária”. Uma breve descrição das personagens mais importantes nos dará uma imagem, um retrato do próprio romance. 

Lúcia é uma valorosa heroína, que pertence à tradição das grandes heroínas da literatura. Ela nos faz lembrar a Penélope de Homero e sua leal fortaleza no coração mesmo das trevas nas quais se encontra tantas vezes. Tal como Penélope, ela é assediada pelas investidas indesejadas de homens perversos e assolada por problemas que não são causados por ela. Lúcia exibe o poderoso silêncio da Cordélia de Shakespeare em sua decisão de evitar o caminho de menor resistência, preservando a virtude em meio à maldade. Desse modo, também nos faz lembrar a Beatriz de Dante, na medida em que representa um ícone exato da feminilidade idealizada, digna do amor de qualquer um e merecedora de grande sacrifício da parte do amante que procura ganhar a mão dela.      

Assim como Dante é completamente indigno de Beatriz, Renzo o é de Lúcia. Ele é exaltado, seus juízos são imprudentes e suas ações, precipitadas. Sua falta de prudência e de temperança muitas vezes torna as coisas piores. Mesmo assim, apesar das fraquezas, ele é bom e determinado, não lhe faltando coragem nem astúcia. Por essa razão, o leitor não consegue não gostar dele, apesar de sua irritante falta de juízo. Desejamos que ele tenha sucesso e consiga se unir novamente à mulher que é claramente superior a ele.

Dom Abbondio e o Padre Cristóforo nos mostram o que há de pior e melhor no sacerdócio e na vida religiosa, assim como Chaucer nos mostra o pior e o melhor quando nos apresenta o Frei e o Pároco. Dom Abbondio mostra sua covardia ao abandonar Renzo e Lúcia à perversidade de Rodrigo, colocando o egoísmo e o conforto material acima do bem de seu rebanho. Por outro lado, o Padre Cristóforo mostra-se destemido ao procurar fazer justiça ao casal de noivos, e entra na própria cova dos leões a fim de confrontar Rodrigo.

Com Rodrigo e o Inominado (L’Innominato), Manzoni nos apresenta a dois tiranos assustadores, que já oprimiram os fracos no exercício do poder a fim de servir aos seus propósitos egoístas. Por meio da segunda personagem, ele também nos mostra um dos mais poderosos e palpáveis exemplos de conversão espiritual de toda a literatura, a qual se baseou na conversão real de Francesco Bernardino Visconti.

Outras duas personagens são inspiradas em figuras históricas reais: Frederico Borromeu e Gertrudes, a Freira de Monza. O primeiro, primo de São Carlos Borromeu, sucedeu seu primo como Cardeal-Arcebispo de Milão e também trilhou o caminho de santidade de seu parente como um santo servo da Igreja, incansável e corajoso no zelo pelas almas. Mazoni descreve de forma hábil a santidade de Borromeu, relacionando-a à objetividade masculina sem jamais se rebaixar ao nível adocicado das hagiografias.

A Freira de Monza, por outro lado, é baseada numa aristocrata real que, tendo sido obrigada pela família a entrar para a vida religiosa, vive uma vida amargurada, sucumbindo ao pecado da fornicação e às sólidas ramificações dele. O fato de a pura e casta Lúcia ser confiada ao cuidado de uma mulher como essa acrescenta mais uma reviravolta angustiante a essa triste história. 

Afora essas personagens principais, um punhado de personagens coadjuvantes adicionam à história sua própria característica inigualável. A mais memorável dessas personagens é o Dr. Azzecca-garbugli, o qual, exceto pelo fato de ser algo quintessencial e agradavelmente dickensiano, é um apêndice adequado para um advogado corrupto que tece sofismas e os transforma em dinheiro vivo para si e seus clientes ricos e igualmente corruptos.    

Deve-se mencionar um aspecto final do romance de Manzoni. A obra inteira está permeada de bom humor, uma expressão mesma da bondade do autor, que alivia a severidade do romance com a leveza da esperança cristã. A voz narrativa do autor, quando interposta na história, alivia e atenua com humor a história inteira. É a presença da abrangente e dominante perspectiva cristã do autor que dá uma nota de triunfo e mesmo de triunfalismo às partes mais obscuras da narrativa.

Independentemente de cada mudança catastrófica, a gentil intromissão da voz do autor sempre nos deixa a impressão de que tudo ficará bem no final. Por mais que a situação esteja ruim ou por mais que tenha piorado, a promessa da vitória final está sempre presente até em meio à loucura de Maquiavel ou do massacre dos inocentes. Esta é a essência mesma da grande literatura cristã, que sempre enxerga em cada nuvem o halo prateado e o sol invisível do qual ele é sinal, por saber que a mais obscura tragédia está sempre e em última instância sujeita à mais divina comédia.


Fonte: Site do Padre Paulo Ricardo

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