
“Era uma vez uma velhinha que adorava dar nome às coisas.” — Assim começa a história de “A Velhinha que Dava Nome às Coisas”, de Cynthia Rylant, um livro infantil que meus filhos gostam muito (e eu também!).
A “Velhinha que Dava Nome às Coisas” vivia sozinha em sua casa, que nomeou de “Glória”. Em sua casa havia uma velha poltrona, que apelidou de “Frida”, e tinha uma cama, que chamava de “Belinha”. Ah, e ela tinha um carro, que apelidou de “Beto”.
“Ela não gostava da ideia de estar só, sem nenhum amigo, sem ninguém a quem pudesse chamar pelo nome. Então, ela começou a dar nome às coisas. Mas só dava nome às coisas que sabia que durariam mais do que ela.”
E assim ela seguiu nomeando, em sua vida solitária, as coisas que a rodeavam, segundo o crivo da durabilidade. Um belo dia (pode apostar que ela assim se lembrará desse dia, um belo dia!), apareceu no portão de seu jardim um cachorrinho marrom. Ele abanou o rabo e parecia estar com fome.
Ela alimentou o cachorrinho e ele foi embora. No dia seguinte, “lá estava ele de novo”: um pedaço de queijo e dois biscoitos e tchau! À noite, ela se lembrou do cachorrinho: “Ele é tão bonitinho (…) É muito bonitinho mesmo (…).
“Mas ele não podia ficar. (…) Era melhor continuar mandando-o embora.”
Todos os dias ele vinha. Todos os dias ela o alimentava. Todos os dias ela o mandava embora.
“Como não tinha nome, a velhinha não se preocupava em sobreviver a ele, e por isso se achava muito esperta.”
Quem já não experimentou isso?! “Era melhor eu não ter parado para dar aquela informação, isso me fez perder o ônibus!”; “Era melhor eu não ter parado naquela faixa de pedestre, eu já estava tão em cima dela mesmo, e ainda perdi a entrada que eu ia acessar!”; “Era melhor eu não responder aquela mensagem no WhatsApp, afinal, eu tenho mais o que fazer, preciso do meu momento imperturbável de qualidade e descanso!”
É mais fácil mesmo não se comprometer, dá menos trabalho não ligar, fingir que não é conosco, não se sentir responsável, não sorrir, não estender a mão, não repetir a história que a criança pede… Assim se honra a si mesmo, as próprias preferências, o plano “perfeito” de vida!
Mas amar… Ah, amar… É tornar-se vulnerável (essa frase não é minha e é uma pena não saber de quem é para poder dar os créditos ao autor).
“Intimidade é existir no coração do outro” (essa, felizmente, eu sei a autora para dar os créditos: Fabiana Azambuja, no Teen STAR, em Brasília/DF, outubro de 2023).
E o amor, em meu jeitinho prolixo de ser:
Está nos olhinhos puros dos meus três garotinhos que me olham sem cessar;
É esperar incansavelmente logo no primeiro encontro;
É levar cinco bananas e três laranjas pros netinhos dos quais se lembrou no mercado;
É cuidar dos netos quase com exatidão de como fariam os pais, por amor e respeito;
É maquiar a sua irmã que sabe “muito pouco ou quase nada” de maquiagem e ajeitar os seus cabelos na fase de pós-parto, e ainda levar uma bolsa de festa que você nem pediu e até um perfume importado para fechar o pacote festa de casamento;
É perceber que a sua cunhada está batendo o pé de ansiedade por um pós-parto um pouco difícil de engolir e ouvir com paciência;
É emprestar tudo o que você tem de bebê pra sua cunhada que vai ter bebê;
É mandar flores e palavras que pareceram sair do coração do próprio Deus;
É levar um chocolate com coca-cola, pra “quebrar o doce”;
É pedir ao Hélio Ziskind que grave um vídeo dizendo “Oi, Isabela! Sua comadre Ângela tá me pedindo pra gravar um vídeo pra você e tô aqui te mandando um beijo então” (ele é o meu cantor infantil favorito);
É entrar numa piscina com seu filho toda terça e quinta sem gostar nem um pouco;
É começar o quarto (às vezes o quinto) turno de trabalho, às 21h, para apoiar a sua amiga que é mãe, em seu trabalho profissional (“sem hora” para voltar pra casa);
É escrever um trecho de um artigo sobre a DSI para incentivar a “pobre” da amiga que não tem vocação para a pesquisa científica;
É preparar duas marmitinhas completas pros filhos das suas amigas que estão fazendo introdução alimentar e não tem nada em casa pro outro dia na rua;
É doar uma hora semanal para fazer atividade de pré-alfabetização com uma criança sem ganhar um centavo para isso, quando você podia estar dormindo entre uma aula e outra (devidamente remunerada);
É ir na casa da sua paciente gestante num sábado à noite para mais uma tentativa de indução natural de parto;
É rezar tanto (mas tanto) e assim fazer o céu se mover e essa gestante entrar em trabalho de parto após 24h de indução hospitalar, quando as forças ameaçaram ir embora;
É passar um expulsivo inteiro apoiando a barriga da mãe para o bebê se posicionar adequadamente e nascer;
É deixar sua filha com os avós e ficar com sua amiga recém parida na UTI e acompanhar “cada respiração” sua com um olhar cirúrgico;
É mandar um áudio para ensinar os sinais de bronquiolite, mesmo a pediatria não sendo a sua área preferida;
É mandar uma medalhinha de Nossa Senhora de Guadalupe (vinda direto do México), com a convicção de que está “mandando” a própria Virgem de Guadalupe para cuidar de uma família com bebê internado;
É ouvir incontáveis histórias duras, dessas de partir o coração e o juízo em pedaços, e dizer “eu estou aqui” (e às cinco da manhã rezar por você);
É indicar um filme (vários!) que vai remexer o coração de uma mãe e fazê-la escolher o nome do seu terceiro filho (e jamais imaginar que seria o padrinho desse filho) e outro (“Um Lindo Dia na Vizinhança”), que também inspira, em alguma medida, este texto.
É encontrar meios mirabolantes de dizer, todos os dias, em muitas circunstâncias: “Eu te amo, minha filha!”
Mas a “Velhinha que Dava Nome às Coisas” ainda acreditava que “Era melhor continuar mandando-o embora.” e “se achava muito esperta.” Vamos adiante, uma reviravolta está prestes a acontecer!
“Um dia o cachorro marrom não apareceu na casa da velhinha. (…) No dia seguinte, novamente, o cachorro não apareceu. A velhinha dirigiu Beto pela cidade procurando o cachorro, mas não o encontrou.”
A tristeza ancorou ainda mais em seu coração. Ah, ferida de amor, vulnerável… afinal, aquele cachorrinho sem nome já existia em seu interior (em seu coração).
Ora, se não é o mesmo que acontece quando não construímos um campo aberto (livre) em nosso coração, mas sim muros (Evangelii Gaudium, 274) grossos, acreditando que, assim, não nos feriremos, que é melhor, continuamente, mandar embora. E ainda se achar, veja só, muito esperto!
Bom, mas como eu ia contando, estamos prestes a testemunhar uma reviravolta na vida da “Velhinha que Dava Nome às Coisas”: a velhinha voltou para casa e, “No dia seguinte ao dia seguinte” ligou no canil da prefeitura e foi questionada se o cachorro marrom que procurava usava coleira com o nome dele, ao que respondeu com sinceridade — Não.
Determinada a encontrar o cachorro marrom sem nome, foi até o canil e, novamente questionada sobre o nome do cachorro, ela pensou um pouco e:
“Lembrou-se dos nomes de todos os amigos queridos aos quais ela havia sobrevivido. Viu seus rostos sorridentes, lembrou-se de seus nomes e pensou em como tivera a sorte de ter conhecido esses amigos. ‘Sou uma velha sortuda’, ela pensou. — O nome do meu cachorro é Sortudo — ela disse ao encarregado do canil. (…) A velhinha gritou: — Aqui, Sortudo! — e, ao som de sua voz, o cachorro marrom veio correndo.”
Ah, o Amor… que nos vê, que nos ouve e toca a todo o instante. E nEle, por Ele e com Ele, enche os nossos corações e as nossas orações (como em “Um Lindo Dia na Vizinhança”) de rostos e de nomes (Evangelii Gaudium 274), fazendo de nós pessoas pra lá de Sortudas!“.
E ganhamos plenitude, quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de nomes!” (Papa Francisco – Evangelii Gaudium 274).
Texto escrito por Isabela Lopes, missionária da Rede de Missão Campus Fidei.