Um artigo maravilhoso foi publicado no jornal The Federalist há alguns anos, escrito por D. C. McAllinster, intitulado “Como parar de sexualizar tudo” [em inglês, How to Stop Sexualizing Everything]. O texto tocou no caráter esquizofrênico de nosso tempo, particularmente da cultura americana, no que tange à expressão de nossa intimidade. Basicamente, ela afirmou que ou evitamos temerosamente o toque e a intimidade, pois podem ser entendidos como um pecado ou um avanço sexual, ou cedemos a completamente tudo, e tudo o que tocamos passa a ser entendido com sutilezas e insinuações sexuais. McAllinster afirma: “O efeito dessas duas atitudes conflitantes – puritanismo e sexualização – tem tido um efeito deformador na amizade. Por um lado, as pessoas não se sentem livres para demonstrar suas emoções. Por outro, quando o fazem, esses sentimentos tornam-se sexualizados”.
Um documentário de 2016 da BBC [uma companhia americana de telecomunicações], chamado “As Cartas Secretas do Papa João Paulo II”, ilustra perfeitamente essa deformada dicotomia. Por décadas, São João Paulo II manteve uma conhecida amizade com a Drª Anna-Teresa Tymieniecka, uma filósofa polaca que era profundamente conhecedora do trabalho do filósofo alemão Edmund Husserl. O fato de o Papa também ter interesse na fenomenologia de Husserl permitiu que esses dois fossem amigos por anos (mesmo tendo passado por momentos difíceis). Ela era uma mulher casada, mãe de três filhos, morando nos Estados Unidos. Ele, quando se conheceram, era um cardeal da Igreja. Suas correspondências duraram até a velhice.
O jornalista Ed Shourton, que fez o documentário, insinuou que o relacionamento de décadas era, de alguma forma, pelo menos para uma das partes envolvidas, romântico. Suas alegações teriam sido “reforçadas” pelo Professor Emérito da Universidade de Cambridge, Eamon Duffy, que afirmou em uma entrevista: “Obviamente existe uma dimensão de ‘brincar com fogo’ quando há um homem fortemente heterossexual e uma mulher atrativa em um relacionamento intenso que é cultivado e no qual envolve o intelecto num alto grau de intensidade. Há perigos por todos os lados”.
A esse pensamento, segundo o qual a amizade entre um homem e uma mulher é, por sua própria natureza, “perigosa”, é ainda mais credível nas observações de alguém a quem Stourton se refere como um “padre estagiário” (a minha investigação revelou que um “padre estagiário” é também conhecido como um seminarista). John Cornwell aparentemente frequentou o seminário entre 1953 e 1958. Ele afirma que, naquele período, “a percepção era de que, mesmo que você tenha uma forte amizade com uma mulher, aquela situação poderia ser o que conhecíamos como ocasião de pecado, e se expor a uma ocasião de pecado era tão mau como se você tivesse realmente cometido o pecado”. A essa triste (e completamente incorreta) articulação sobre no que consiste o pecado, segue-se a fala de outro entrevistado, o qual afirma que, “em sua formação, a maioria dos padres teria tido receio de uma relação tão estreita. A reação mais natural teria sido a de cessar contato”.
Ironicamente, a linguagem utilizada nesta entrevista revela aos telespectadores e aos leitores dessa história bombástica o escândalo mais profundo de todos, e que nada tem a ver com João Paulo II. É o escândalo de que muitos homens e mulheres de hoje são incapazes de imaginar um relacionamento íntimo que não envolva, de alguma forma, algum tipo de tom sexualmente romântico.
Na realidade, a Igreja tem uma longa história de exemplos de homens e mulheres que tiveram amizades íntimas e relacionamentos afetuosos uns com os outros, sem envolver relações sexuais. Esses relacionamentos eram conhecidos como amizades (essa é uma palavra maravilhosa que deveríamos restaurar em nosso vocabulário). De fato, São João Paulo II teve inúmeras amizades com mulheres que perduraram por décadas e incluíram cartas, telefonemas, refeições compartilhadas e caminhadas. As filmagens da BBC parecem implicar que esse relacionamento particular com a Drª Tymieniecka era isolado, e os encontros, exclusivos. Mas a verdade é que não eram. São João Paulo II era uma figura magnânima que amava as pessoas profundamente, e era transparente em relação a suas amizades. Ele também era prudente, encontrando-se com homens e mulheres para aquelas refeições privadas e saindo de férias com amigos e familiares juntos. Diante da imagem de São João Paulo II e da Drª Tymieniecka em pé atrás de um carro, deveríamos perceber que uma terceira pessoa tirou a foto. Imagino que fosse o marido dela.
Em relação às correspondências, aí vai um trecho de uma delas:
“Sei que você tem total confiança em meu afeto; não tenho dúvidas sobre isso e deleito-me em pensamento. Quero que saiba e que acredite que eu tenho um intenso e especial desejo em te servir com toda minha força. Seria impossível para mim explicar tanto a qualidade quanto a grandeza desse desejo que tenho de estar a seu serviço, mas posso te dizer que creio que isso provém de Deus, e por essa razão, nutro essa aspiração todos os dias, e diariamente a vejo crescer notavelmente… Deus deu-me a ti; portanto, considerai-me como teu Nele, chamai-me sempre que quiserdes…”
Desculpe-me, acabei de te enganar. Esse é, na verdade, um trecho de uma conversa entre São Francisco de Sales e Santa Joana de Chantal, datada de 24 de junho de 1604. Depois da morte de seu marido, São Francisco foi o diretor espiritual dela por anos, dando conselhos a ela a respeito da formação de uma nova comunidade religiosa (não tenho acesso a uma citação notável das cartas de São João Paulo II a Tymieniecka).
De qualquer forma, aí temos uma anotação íntima, de um homem a uma mulher, homem celibatário para uma mulher viúva. Como você se sentiu ao ler esse trecho? Sentiu-se desconfortável? Chocado? Achou inapropriado? Admito que pessoalmente me impressionou quando eu o li pela primeira vez. Eu achei estupendamente lindo, e me senti enganado e traído por essa cultura hiperssexualizada em que vivemos, porque também me senti um pouco manipulado, como se devesse ver um romance quando li essas palavras cheias de tanto amor.
Os exemplos de um amor simultaneamente casto e fervoroso continuam e, contudo, em cada um deles somos desafiados a ver os outros primeiro como “ocasião de graça” em vez de “ocasião de pecado”. Através dessa graça, nas palavras de São João Paulo II, “chegamos a uma consciência mais plena a respeito da gratuidade da beleza do corpo humano, da masculinidade e da feminilidade. Essa beleza gratuita torna-se uma luz para nossas ações…”
Em um período de dois anos que antecedeu sua prematura morte, Santa Teresa de Lisieux e um seminarista chamado Maurice trocariam um total de 21 cartas. Ele escreveu 11, e a Pequena Flor, 10. Para essas santas almas, as cartas revelaram um amor que era plenamente humano e completamente casto. Santa Teresa escreveu em uma anotação: “Na tua carta do 14º, fizestes meu coração tremer de alegria. Entendo melhor do que nunca o quanto sua alma é irmã da minha, uma vez que é chamada a se elevar a Deus através do ELEVADOR do amor, e não a escalar a dura escadaria do medo…” Mais tarde, quando ele estava prestes a ser enviado em missão, ela escreveu: “Quando meu querido irmãozinho partir para a África, deverei segui-lo não só em pensamento e em oração; minha alma estará com ele para sempre…”
Vamos olhar outra conversa íntima, mas agora entre homens, há mais de 1600 anos: “Falar e brincar juntos, fazer brinquedos de madeira juntos; ler juntos livros honrados; fazer-se de bobo ou ser sincero juntos… ansiar pelos ausentes com impaciência; e acolher a chegada de alguém com alegria. Essas e outras expressões semelhantes, procedentes do coração daqueles que amaram e foram novamente amados, pelo semblante, pela língua, pelos olhos, e por mil gestos agradáveis, eram como combustível para derreter as nossas almas juntas, e torná-las como que uma só. Isto é o que é amado nos amigos”.
Esse trecho é de Santo Agostinho, extraído de sua autobiografia íntima e sempre moderna Confissões (Capítulo 8, Seção 13), escrito entre 397 e 400 d.C. Aos ouvidos modernos, esse nível de intimidade entre dois homens só pode ser visto como algum tipo de homossexualidade não assumida. Essas mesmas mentes, marcadas por uma cultura inundada por alusões sexuais e insinuando-as em todas as coisas, até mesmo colocam uma conotação gay ao redor do relacionamento entre Davi e Jônatas, em 1 Samuel 18, 1-3: “Tendo Davi acabado de falar com Saul, a alma de Jônatas apegou-se à alma de Davi e Jônatas começou a amá-lo como a si mesmo.”
Nós nos tornamos, nas palavras do próprio São João Paulo II, “mestres da suspeita”, incapazes de ver como as interações humanas podem se elevar acima de meras gratificações sexuais ou apropriações.
Isso não é nada novo. Durante o processo de beatificação do Padre Pio, em 1990, o processo foi suspenso depois que foi revelado um esconderijo de cartas que o santo franciscano escrevia para uma filha espiritual, que ele chamava de Cleonice Morcaldi. Ele a conhecera por volta de 1930 quando ela era criança, órfã de ambos os pais. São Padre Pio havia prometido à mãe moribunda da menina que ele cuidaria de sua filha. Alguns investigadores, porém, acharam as cartas demasiado afetuosas.
Homem e mulher. Isso é território santo. É território sagrado, e nesse lugar somos chamados a aprofundar o mistério de nós mesmos, a um saudável reconhecimento de nossos próprios corações, e a descobrirmos como nos portamos diante da habilidade de verdadeiramente ver um ao outro. Convido-vos a ir adiante, a rezar de modo mais sincero sobre essa arte perdida que é a amizade, a santa amizade. Ela deve ser reacendida. Vai exigir trabalho, oração e muita paciência, especialmente em meio à presente escuridão. Mas com a graça, podemos recuperar esse precioso dom, e nossa visão um do outro será restaurada. É uma esperança ao nosso alcance. É nossa herança, e também uma promessa. “Jesus veio para restaurar a criação na pureza de suas origens” (Catecismo, 2336). Finalizo aqui com um maravilhoso e profundamente pessoal trecho de São João Paulo II, datado originalmente de 8 de fevereiro de 1994, mas que não foi impresso até 2006:
“Deus confiou a mim muitas pessoas, tanto idosos quanto jovens, meninos e meninas, pais e mães, viúvas, pessoas saudáveis e doentes. Sempre, quando Ele as deu a mim, Ele também me comprometeu para com elas, e hoje eu vejo que poderia escrever separadamente um livro sobre cada uma delas – e cada biografia seria, ao fim, sobre o dom desinteressado que o homem sempre é para o outro. Dentre eles, há quem não tenha tido estudos, como os operários das fábricas; há também estudantes, professores universitários, doutores e advogados e, finalmente, padres e religiosas consagradas. É claro, incluem tanto homens quanto mulheres. Um longo caminho fez-me descobrir o gênio feminino, e a própria Providência fez com que chegasse o momento em que eu realmente o conhecesse e até fiquei, por assim dizer, deslumbrado por ele”.
São João Paulo II, Poeta dos Mistérios Divinos e Apóstolo da Beleza da Pessoa Humana, rogai por nós!
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Autor: Bill Donaghy
Bill Donaghy é conferencista sênior do TOB Institute. Tendo trabalhado na evangelização e educação desde o início dos anos 1990, Bill juntou-se ao corpo docente do TOB Institute em 2010 e tornou-se membro por tempo integral da equipe como especialista de conteúdos em 2013. Com formação em artes visuais, filosofia e teologia sistemática, tem dado palestras e retiros a bispos, padres, diáconos, religiosos e fiéis leigos em todo os Estados Unidos e internacionalmente. Bill é o co-autor, com Chris Stefanick, do popular programa RISE: 30 Day Challenge for Men e é marido e pai de quatro filhos.
Fonte: TOB Institute
Traduzido por Tiago Veronesi Giacone – Membro da Rede de Missão Campus Fidei.