Por Dom Rafael Llano Cifuentes
Muitas vezes a vida pode ser comparada a um desfile de máscaras. Assim como um folião esconde o seu rosto atrás de uma máscara de papelão, muitos homens e mulheres escondem a sua vaidade, a sua covardia, a sua preguiça, enfim, os seus defeitos, atrás de uma aparência de virtude. É preciso arrancar essas máscaras que forjamos e lutar para adquirir as verdadeiras virtudes.
O homem experimenta um impulso indeclinável para a grandeza, a perfeição, o triunfo, mas ao mesmo tempo sente-se inclinado ao comodismo, à preguiça e à lei do menor esforço.
Alguns superam esse dualismo lutando por superar o mundo das tendências inferiores e elevar-se às alturas; outros muitos deixam-se levar encosta abaixo pelo desleixo e pela apatia; e um terceiro grupo, talvez o mais numeroso, opta por uma solução intermédia: esconde as suas insuficiências e defeitos por detrás de uma máscara.
A máscara é muito mais fácil de elaborar do que uma personalidade verdadeira. Aquela faz-se de papelão; esta outra, de lutas e esforços, de sangue e de lágrimas.
São tão consoladoras as representações teatrais, o desfile de máscaras… Que alegria para uma humilde empregada doméstica poder ser durante quatro dias, na escola de samba, uma princesa, uma rainha ou uma fada… Que satisfação para o Zé-pedreiro viver por umas horas o papel de Presidente da República, de Imperador do Brasil ou de Luís XV… Que sensação agradável a do primeiranista universitário que enche a boca com um vocabulário erudito, mas que no fundo é um pobre ignorante… Que vibração vazia a do rapaz que exagera as suas aventuras amorosas, levantando ondas de admiração entre os seus inibidos colegas…
Mas as alegrias deste grande carnaval do mundo terminam um dia, numa quarta-feira qualquer… E a humilde empregada com olheiras no rosto terá que trocar o vestido de princesa por um pobre avental de cozinheira. E o bom Zé-pedreiro deixará as calças de cetim brilhante à Luís XV para vestir aquelas outras, esbranquiçadas e gastas, com as quais ganha honestamente o pão de cada dia. E o estudante enfatuado ficará deprimido com a nota baixa que tirou na última prova. E o faroleiro vaidoso, no silêncio da noite, sentirá no coração a mordida da solidão e da saudade, porque, no meio das suas veleidades e namoricos superficiais, nunca conseguiu conquistar um verdadeiro e profundo amor.
O carnaval sempre termina em tristeza. A máscara da vida cai. E então, o que acontecerá?
“O que acontecerá – escrevia Nietzsche –, quando cair a máscara? Quem nos poderá reconhecer? Se nos tirassem os véus, as cores e as atitudes, não ficaria mais do que um espantalho” [1]. Como seria triste se, no fim da nossa vida – ao apresentar-nos diante da luz vivíssima de Deus, a Verdade infinita –, chegássemos à conclusão de que toda a nossa vida foi uma farsa e toda a nossa personalidade uma máscara de papelão.
Vamos, por isso, deter a nossa atenção neste desfile de disfarces, deixando correr diante dos nossos olhos, na passarela da vida, as principais máscaras carnavalescas por trás das quais costumamos esconder-nos, para delas tirar um ensinamento fecundo. O apresentador deste espetáculo não tem espaço nem tempo para fazer desfilar tantas e tão variadas fantasias. Por isso, limitar-se-á a uma única série, provida de características bastante originais: a série “zoológica”. Observaremos um conjunto variado e colorido que, com as suas feições pitorescas, poderá ensinar-nos interessantes lições.
O PAVÃO
A primeira fantasia que o apresentador faz desfilar no palco é realmente fantástica: levanta na platéia uma entusiástica salva de palmas. É um magnífico pavão, que entra caminhando pausadamente, com inclinações à direita e à esquerda, erguendo a crista vermelha, inchando o corpo, sacudindo a sua plumagem fulgurante. Mas essas penas brilhantes encobrem apenas a sua pobreza interior, e esses penachos vistosos levantam-se acima de um cérebro de mosquito.
As penas coloridas lembram-nos tantas e tão diferentes figuras: o físico escultural daquele que modela os seus músculos com o mesmo esmero com que a adolescente aprimora o seu cabelo diante da penteadeira; o corpo de quem se exibe na praia com a mesma vaidade com que a manequim desfila nas passarelas da moda. Ou ainda a atitude dessas “bonecas deslumbradas” – homens ou mulheres – que estão continuamente a contemplar-se a si mesmas como Narciso no espelho das águas. A cauda chamativa do pavão aparece-nos no nosso viver quotidiano sob a forma de carros vistosos, de apartamentos luxuosos, das reuniões da “high society” e dos brilhantíssimos espetáculos da moda…
Quantas vezes já vimos desfilar diante de nós, na passarela profissional, aqueles que gostam de ser denominados “vanguardistas geniais”, “progressistas revolucionários”, “parafrentex”, “pioneiros do progresso”… O importante, para eles, não é dizer a verdade, mas “formular” o que “pega bem”, o que está “inserido no contexto”… O que realmente lhes importa é – como se diz agora – “estar in” e evitar a todo o custo “ficar out“. Por isso, fazem questão de utilizar um palavreado “moderno” com ressonâncias sonoras – “estruturalismo”, “dialética conjuntural”, “ecosistema” – ou com uma semântica “esnobe” – back-ground, feeling, design, check-list, handicap… Pensam estar apresentando assim uma imagem de intelectual brilhante ou de jovem executivo americano – de um hippie –; mas quem conhece a realidade esquelética escondida por trás da refulgente plumagem – a sua inconfessada ignorância – percebe que estão pura e simplesmente fazendo um papel ridículo. Sim, já observamos muitas vezes esse desfile nas aulas universitárias, nos salões da moda, nos clubes que dão “status”…
Há em todas essas atitudes, e em outras muitas que aparecem em todos os terrenos – no esporte, nas finanças, na política e na vida religiosa –, um certo complexo de inferioridade escondido e dissimulado, uma vontade de querer brilhar e aparecer que encobre um verdadeiro raquitismo interior. Parece que se quer compensar com o luxo do apartamento, com a potência do carro, com o barroquismo da linguagem e até com as falsas virtudes, as acanhadas dimensões da própria personalidade. O brilhante aspecto do pavão é a máscara de uma personalidade atrofiada, que camufla a pobreza do ser com a riqueza do ter e do aparecer.
O apresentador convida o pavão a retirar-se, alegando que tem outras personagens para apresentar. Mas o pavão não obedece. Começa a dar voltas rápidas em torno de si próprio enquanto escuta os aplausos, e parece que o ouvimos dizer num murmúrio de satisfação: “Aplaudam, aplaudam mais; eu vibro com os aplausos, os aplausos é que me dão vida… Vocês gostam de mim? É natural, muito natural; eu também gosto de mim, especialmente da cauda”.
Por fim, o apresentador não teve outro remédio senão puxá-lo para fora do palco… pela cauda.
O CAMALEÃO
Que contraste! Sobe agora ao palco uma fantasia estranha; parece um animal antediluviano em miniatura. Mas o mais estranho é que, à medida que se aproxima, vai mudando lentamente de cor: apresenta-se pardacento sobre o tablado, avermelhado quando pisa o tapete grená, esverdeado quando se coloca diante das samambaias que servem de enfeite…
O camaleão defende a sua fraqueza utilizando um recurso natural – o mimetismo –, que o identifica com o meio em que se encontra. Há muitos homens que usam esta máscara: mudam de cor ideológica, profissional, política ou religiosa de acordo com o ambiente que os rodeia. Estão sempre do lado do mais forte ou da maioria: são progressistas entre os progressistas, conservadores entre os conservadores, despudorados entre os sem-vergonhas, pacatos na casa dos avós, fervorosos num ambiente de igreja… São de um feitio na família, de outro na escola, na roda de amigos, na praia, e de outro bem diferente quando estão sozinhos. São múltiplos, plurivalentes. Têm uma máscara polifacética. E com isso acabam por perder a personalidade.
Quando o camaleão toma a cor da superfície em que se encontra, adapta-se ao seu meio para sobreviver. O homem, algumas vezes, adapta-se por prudência; mas outras muitas por covardia, por mediocridade, pelo desejo de agradar a todos, por astúcia ladina ou por ambição. Mas quase sempre compromete assim a sua coerência, se é que não deforma a sua personalidade. É o caso do cristão que vive “em cima do muro”, que tem medo de comprometer-se em ambientes adversos com receio de ser “pixado” de “carola” ou de “careta”, e que nada mais faz do que aumentar o grupo dos indefinidos e amorfos, para não dizer dos covardes.
O camaleão sabe jogar astuciosamente com a omissão culposa e o silêncio, com a atitude escorregadia e ambígua…; inclina-se pela opinião ou pelo partido que venha a favorecê-lo mais; espera, nas discussões, que elas cheguem ao fim para depois apoiar o ponto de vista que parece ter vencido; coloca na frente um “porta-voz”, um “testa-de-ferro”, para evitar “queimar-se” pessoalmente; gosta, com freqüência, de ficar na sombra para aparecer só no momento do triunfo; tem na sobreloja da sua alma vários sistemas métricos, vários padrões de pesos e medidas, que utiliza para favorecer uns e enganar outros…
Em certos ambientes, valoriza-se esta atitude como “prudente”, “política”, “diplomática”; diz-se que revela “jogo de cintura”, “jeito”, quando na realidade se deveria julgá-la como pouco nobre, pouco íntegra… Porque esse homem poliédrico, escorregadio como uma enguia, esse que na aparência é uma espécie de “herói da habilidade”, é na realidade um manhoso matreiro, um ridículo comediante…, um grande palhaço.
Pouco brilhante foi a apresentação desta fantasia, mas quem se esconde por trás dela pouco se importa: no fundo do seu rosto, traz um sorriso irônico que parece dizer-nos: “Estou enganando a todos… Deixa para lá, o importante é passar despercebido; mas no fim sairei vitorioso… Quem ri por último, ri melhor”.
O LEÃO
Agora irrompe no palco, com atitudes decididas, um felino de grande porte. Com ferocidade, mostra ostensivamente as suas garras e os seus dentes. “É um leão!”, grita a platéia. A fantasia é perfeita. Encarna a agressividade terrífica do rei da selva.
Mas esta máscara, que esconde por trás? A pergunta evoca-me um outro desfile, um desfile de figuras carnavalescas que costumava apresentar-se nos dias de festa em certa cidadezinha onde eu, de criança, passava as férias. Assustava-me principalmente o gigante, que tinha uma cabeça imensa; aproximava-se de mim em atitude desafiadora, como se quisesse devorar-me, e eu sempre saía correndo. Quem estaria por trás daquilo?, perguntava-me. Depois de certo tempo, porém, descobri que quem enfiava aquela enorme fantasia era um certo pobre coitado que morava na aldeia, mentalmente debiloide. Aproveitava a festa para ser gigante por um dia, porque no resto do ano era um homenzinho insignificante, ao qual ninguém prestava atenção.
Muitas vezes, as pessoas não reparam que, por trás da agressividade, se esconde a insegurança: o fraco oculta-se com freqüência por trás de uma máscara de leão. Este paradoxo repete-se em muitas facetas da vida humana, dando razão àquele velho e sábio ditado que diz: “Diz-me de que te gabas e te direi de que careces”. Os exemplos são os mais variados.
O católico divorciado que apresenta ostensivamente a sua nova companheira está ocultando dessa forma o mal-estar que sente no seu íntimo. A pessoa que apresenta a “condição homossexual” como “elevada expressão de sensibilidade” da cultura grega ou da inteligência de alguns gênios artísticos, no fundo pretende apenas fazer calar os remorsos da sua consciência diante dos seus desvios sexuais. Aquele que se gaba das suas experiências amorosas costuma na realidade ser um fracassado nesse campo.
Gregório Marañon, no seu conhecido ensaio sobre “Don Juan”, estudou em profundidade a vida de Juan de Vilamediana, que foi o personagem real posteriormente aproveitado por Tirso de Molina para descrever a psicologia do “conquistador”. Através desse estudo, e do de outras vidas paralelas, chegou à conclusão de que o tipo donjuanesco é uma personalidade de virilidade duvidosa: sente-se de alguma maneira compelido a repetir quantitativamente as suas “aventuras amorosas” para compensar a carência qualitativa de uma autêntica hombridade [2].
Da mesma forma, o ateu que, sem vir a propósito, trata de demonstrar com aparente segurança a inexistência de Deus, só mostra assim as suas dúvidas e incertezas. Vem-me à memória certo rapaz, meu aluno da Faculdade Paulista de Direito, que afirmava a torto e a direito que era ateu. Era muito amigo dele e da sua turma. Naquele ano, muitos dos seus colegas vieram ter comigo para se prepararem para a Páscoa, mas ele se negava. Os seus amigos, de brincadeira, empurraram-no para a sala onde me encontrava. Ficou sem jeito e começou a dizer, muito nervoso: “Eu não me confesso, eu sou ateu, Deus não existe!” Comecei a rir e disse-lhe: “Acalme-se, você não precisa confessar-se, não se preocupe… Quer fumar um cigarro?” Começamos a conversar descontraidamente, falando de diversos temas da escola… De repente, perguntei-lhe: – “Você vê algum cavalo nesta sala?” – “Não. Por que me faz uma pergunta tão esquisita?” – “Você gastaria algo da sua inteligência e do seu tempo para demonstrar que aqui não há um cavalo?” – “Não, seria absurdo!” – “Então por que gasta tanta energia para tentar demonstrar que Deus não existe? Se você estivesse bem convencido disso, nem se lembraria de dizê-lo. Não será que insiste em falar disso porque, no fundo, tem sérias dúvidas de que não exista?” O rapaz ficou branco. Levantou-se de um pulo e saiu em disparada, enquanto dizia: – “Não tente convencer-me! Não tente convencer-me!”…
Pobre máscara de leão… Não percebe que já sabemos que, por trás das suas longas melenas, dos seus dentes afiados e das suas garras potentes, se esconde um homem pusilânime, uma pobre criatura insegura e acuada, que defende a sua fraqueza atacando com fingida ferocidade.
A RAPOSA
Agora entra sub-repticiamente, sem ser chamada, uma raposa de olhos verdes e olhar astuto. A sua atitude é ladina: não avança em linha reta, segue sempre direções oblíquas, e nunca olha os outros de frente…
Quem desvendou muito bem esta máscara foi La Fontaine, na sua conhecida fábula. A raposa desejava comer aquele suculento cacho de uvas; pulava uma e outra vez, tentando atingi-lo com os seus dentes, sem o conseguir; até que, esgotada pelas suas repetidas tentativas, afastou-se dizendo: “Bah… estão verdes”.
É a tia solteirona que sente inveja da sua sobrinha charmosa, tão procurada pelos rapazes bonitos, e que murmura no pequeno círculo familiar: “Com essas maneiras livres, qualquer garota conquista hoje um rapaz… No meu tempo não era assim, não…” É o preguiçoso que critica o seu colega, bom aluno, dizendo que é um “bitolado”, “fominha”, “queridinho” do professor, quando no íntimo é ele quem se sente fracassado por não se destacar nos estudos. É o rapaz que faz troça de um colega porque namora honestamente, porque vive a castidade, e diz dele que é “pouco homem”, quando na verdade está escondendo o desejo íntimo de poder ter também aquela alegria, aquela vibração tão próprias do verdadeiro amor… Quanta razão tem o velho ditado que diz: “Quem desdenha quer comprar”!
A ironia, por exemplo, representa quase sempre um ataque indireto. É a tática de quem se sente ferido na sua vaidade, no seu orgulho, e teme o ataque frontal porque receia ouvir uma réplica humilhante, mas também não é capaz de reprimir o seu desejo de ficar por cima. Nesse conflito, opta pela solução dissimulada, “de raposa”: a piada ferina. É isso que explica em muitos casos a freqüência com que se maneja essa arma na ausência da pessoa visada, impedindo-a de se defender. A clandestinidade, a ação sorrateira, as alusões indiretas, são todas elas uma máscara protetora da covardia do homem irônico.
Quantas crises de fé, que aparentemente têm a sua origem em motivos de índole intelectual, encontram as suas verdadeiras causas em razões muito menos puras, menos “racionais” e mais emotivas e passionais, mas habilidosamente disfarçadas. Recordo-me a este propósito da conversa que tive certa vez com um estudante de Medicina. É tão significativa que poderia parecer forjada se não fosse rigorosamente verdadeira. Dizia-me que tinha sérias dúvidas sobre a divindade de Jesus Cristo. – “Mas por quê?” – “Porque li num livro de religiões comparadas que Cristo se inspirou na doutrina de Maomé”. – “Mas você não sabe que Maomé viveu no século VII depois de Cristo…?” Olhou-me por um longo tempo e depois, cheio de vergonha, disse-me que na realidade estava tentando justificar-se… Talvez tivesse confundido Maomé com Buda… Que ultimamente estava numa situação muito difícil… Não conseguia “safar-se” de uma desquitada que não se separava dele nem de dia nem de noite… Naquele momento, começou a soluçar…
A raposa nunca indica o verdadeiro motivo da sua desistência. “As uvas estão verdes…”, diz. Rejeita-se o que se procura; ironiza-se o que se inveja; critica-se o que no íntimo se deseja. Quantas pessoas andam pelas ruas das nossas cidades, pelos escritórios, fábricas e escolas vestidos com essa pele de raposa!
A raposa, ladinamente, retira-se pela porta dos fundos… Cai o pano.
A AVESTRUZ
Levanta-se o pano. No meio do palco, encontra-se agora uma estranha ave de longo pescoço, com a cabeça escondida em baixo do tapete. E adivinhamos também, por trás de mil rostos, o mesmo gesto ridículo da avestruz que esconde a cabeça na terra quando detecta a proximidade de uma fera perigosa.
É a atitude de quem não quer tomar consciência da verdade, por medo das conseqüências que essa verdade possa acarretar. Essa pessoa tem pavor de fazer uma pergunta comprometedora, de ir ao médico, de ler determinado livro esclarecedor, de fazer um retiro, de conversar com o sacerdote, de refletir ou meditar… Tem receio de ficar em silêncio, pois o silêncio lhe grita verdades que não quer ouvir. É a cegueira voluntária: “O melhor é não pensar / para não se incomodar”.
Esta atitude, no terreno espiritual, lembra aquelas palavras de São João: “Quem pratica o mal aborrece a luz e não se aproxima dela para que as suas obras não sejam repreendidas” (Jo 3, 20). Os que se cobrem com a máscara da avestruz fogem daquelas verdades que os obrigariam a romper com um estilo de vida contrário aos ditames mais profundos da sua consciência. Obscurecem os seus olhos com a ignorância para poderem esgrimir depois o inconfessável álibi: “Não tenho culpa, não posso ser incriminado porque desconhecia a minha responsabilidade nesse terreno…” Provoca-se conscientemente a própria cegueira, para mais tarde justificar os erros dizendo que não se tinham enxergado: são tão tranquilizantes esses estados crepusculares de semi-responsabilidade…
Há muita gente que, à semelhança da avestruz, vive desse “fazer de conta”. “Faz de conta” que, ao esconder a cabeça, o leão realmente desapareceu; “faz de conta” que não há doentes que morrem abandonados num hospital; “faz de conta” que a vida terrena existirá sempre e que a morte não vai chegar; “faz de conta” que a verdade infinita de Deus deixará de descobrir essas falsidades todas…
E nesse mundo do “faz de conta” vai-se vivendo sossegadamente, até que… um dia, de repente, o leão devora a avestruz. O leão devora a avestruz – a máscara cai – quando se percebe, às vezes tarde demais, que a vida já não tem sentido, que será impossível recuperar o tempo perdido.
Mas talvez já antes, vez por outra, furtivamente, com a visão ainda velada, se comece a sentir medo. Como se uma voz por dentro dissesse: “Você se está enganando, está fugindo…, levante a cabeça!” As sombras que passam pela imaginação dessa pessoa deixam-na assustada… Não enxerga o leão, a realidade objetiva; enxerga só fantasias, sente apreensão diante de possíveis perigos futuros… O verdadeiro leão converteu-se, no seu cérebro, numa espécie de “bicho-papão”… Muitos temores, muitas superstições, muitas neuroses, têm a sua origem nesses estados nebulosos criados pela “síndrome da avestruz”.
A ALCATEIA DE LOBOS
Mal a avestruz se afasta, invade o palco, não uma máscara, mas um verdadeiro “bloco” de máscaras. Todas elas são idênticas: a mesma pele acinzentada, o mesmo focinho, os mesmos gestos… É uma alcateia de lobos!
O que significa esta insólita invasão? O que representa a alcatéia de lobos? Representa a coletividade, a comunidade: os lobos não atuam sozinhos; defendem-se e atacam sempre em grupo.
Os homens também procedem assim freqüentemente. Confundem a sua personalidade com o grupo, diluem a sua responsabilidade no conjunto. E este fenômeno vem-se acentuando de forma característica no nosso tempo: presta-se excessiva atenção ao coletivo, ao que está na moda; domina o receio de não se ser aceito pela comunidade; parece necessário identificar-se com o “figurino” que está “na crista da onda”. Mais ainda – e é aqui que o simbolismo se torna máscara –, justificam-se os erros pessoais com a desculpa do multitudinário: “Todos fazem o mesmo”, “a maioria pensa como eu”… Que sensação de calma tíbia se sente ao contacto com a massa! Parece que defende e ampara, que dilui o sentimento de culpa, subdividindo-o entre as mil cabeças que formam a alcateia humana, tornando o erro impessoal e anônimo!
Indubitavelmente, a influência massificante do ambiente é hoje mais forte do que nunca. Basta reparar na eficaz manipulação exercida pelos meios de comunicação e propaganda; na fácil, universal e indiscriminada acolhida dos “slogans” e dos valores veiculados pelos jornais e pela televisão; no pavor que a maioria das pessoas têm de se verem desaprovadas pelo meio em que vivem; no temor desproporcionado de fazer o ridículo por ficar à margem da idéia que está em voga ou que parece mais “avançada”; na rapidez com que as coisas entram e saem de moda… Tudo isto indica o elevado grau de massificação que sofremos.
Esta característica do nosso tempo aguça a tendência gregária própria das pessoas medíocres: sentem necessidade de agrupar-se de qualquer forma, de “enturmar-se”, de juntar-se, para suprir quantitativamente o que lhes falta qualitativamente, como atributo pessoal. A “turma” aglutina, agasalha, fortalece, anima, aplaude e, especialmente, desculpa.
Vão-se formando assim coletividades, alcateias que atacam e se defendem em conjunto, como os lobos. As “gangues” de assaltantes, de “trombadinhas”, de e traficantes, os “arrastões” de malfeitores que se vão tornando praxe, são apenas uma pequena amostra das outras “alcateias” que atuam muito mais discretamente, sem serem reprovadas, nas mais variadas situações da vida social. Também elas se juntam para encontrar apoio e justificativas: como ri a “patota” quando o mais atrevido conta como “transou” com esta menina ou aquela outra; como se orgulha da sua sagacidade o empresário desonesto quando conta, no círculo dos seus colegas, o último sistema “patenteado” para sonegar o fisco; como todos se mostram corajosos nas passeatas multitudinárias, insultam a polícia, depredam a propriedade pública – enquanto permanecem juntos. Mas cada um dos manifestantes, isoladamente, comporta-se como o mais pacato e pacífico dos cidadãos: o anonimato, consagrado e garantido pela massa, é o que lhes dá forças e os torna valentes.
O grupo acéfalo que não tem nem inteligência nem coração também não tem órgãos capazes de experimentar o sentimento de culpabilidade. O refúgio – a máscara – é a massa. Nisto temos que dar razão ao provérbio popular que diz: “Mal de muitos, consolo de tolos. Erro de muitos, desculpa de bobos”… Para os medíocres dominados pelo espírito gregário, o fato de uma ideia ter muitos adeptos é uma garantia de veracidade; para os que têm a autenticidade de pensar com a própria cabeça, pelo contrário, as idéias são verdadeiras ou falsas pelo seu valor intrínseco.
A responsabilidade é sempre pessoal, intransferível. Nascemos sozinhos e morreremos sozinhos; seremos julgados individualmente e salvos ou condenados individualmente. No momento supremo em que cada um de nós encarar a Verdade infinita de Deus, de que poderão servir-nos os sorrisos de aprovação dos amigos, as desculpas dos companheiros de grupo? Poderão por acaso justificar-nos, diluindo a nossa responsabilidade na “verdade” amorfa da alcateia?
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